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Explorados e Exploradores

Atualizado: 25 de nov de 2022

Marta Harnecker e Gabriela Uribe 1976



Resumo


Neste texto procurámos explicar porque é que sendo os trabalhadores que arrancam as riquezas à natureza e produzem novas riquezas, são os que estão em piores condições na sociedade. Para responder a esta pergunta tivemos primeiro que estudar os diversos elementos do processo de produção: matéria-prima, instrumentos de produção, meios de produção, força de trabalho. Estudados estes elementos, assinalámos que, sendo os instrumentos de produção as condições materiais indispensáveis para todo o processo de produção, os seus detentores, podem impor aos trabalhadores, que não os possuem, condições de trabalho que lhes permitem apropriar-se duma parte do trabalho alheio: é assim que nascem as relações de exploração. O processo de trabalho é portanto um processo histórico que se desenrola sob determinadas relações sociais de produção. Estas tendem a reproduzir-se e na sua reprodução intervêm os elementos jurídico-político, e ideológicos que são controlados por quem detém o poder económico.


Esta análise levou-nos a definir sociedade duma forma científica mediante o conceito do modo de produção. Este conceito resume duma forma clara o facto de as relações de produção serem o centro organizador de todos os aspectos da sociedade. O modo de produção é composto por uma infra e por uma superestrutura, sendo a infraestrutura que determina em última instância a superestrutura. Finalmente distinguimos o conceito de modo de produção do de formação social, que se refere a uma sociedade historicamente determinada. Acabámos insistindo em que a luta contra a exploração económica, para ser bem sucedida, deve destruir os aparelhos através dos quais se exerce o poder político e ideológico das classes exploradoras. Concluímos que nesta luta as classes dominantes nunca renunciarão de forma voluntária aos seus privilégios e por isso os trabalhadores devem preparar-se para uma longa batalha utilizando todas as formas de luta que sejam necessárias para destruir definitivamente a exploração.


Do que dissemos anteriormente vemos que este caderno se limita a fornecer os conceitos mais importantes para o estudo da sociedade, sem entrar no entanto no estudo das contradições que explicam a razão da mudança da sociedade de um tipo para outro. Este tema será desenvolvido no caderno n.° 6 «Capitalismo e Socialismo».

 

1. O trabalho do homem e as riquezas naturais


Ao contrário do que sempre nos disseram para tentar justificar a miséria em que vive o povo Português, Portugal não é um país pobre.


Os nossos rios representam uma grande fonte de energia eléctrica. No nosso subsolo existem grandes quantidades de vários minérios. A nossa extensa costa encerra uma grande riqueza de peixe. Mas estas riquezas naturais de nada servem sem o trabalho do homem.

Sem o trabalho dos mineiros as pirites, o urânio e outras riquezas minerais ficariam para sempre enterradas. Sem o trabalho de muitos homens as águas dos nossos rios perder-se-iam no mar sem serem aproveitadas para iluminar as cidades e fazer andar as fábricas. Sem o trabalho dos pescadores o mar não entregaria os seus peixes. Sem o trabalho dos camponeses, a terra não entregaria os seus frutos.


É portanto o trabalho do homem que permite arrancar à natureza as suas riquezas. Mas a que mãos é que vão parar as riquezas? Vão parar às mãos dos trabalhadores? Não. Todos sabemos que a esmagadora maioria da riqueza criada pelos trabalhadores vai parar às mãos dos capitalistas. Uma pequena minoria da população recebe a esmagadora maioria do rendimento criado pelos trabalhadores, que ficam com as migalhas. Enquanto os trabalhadores têm que viajar pendurados nos autocarros, os seus patrões têm dois ou três carros. Enquanto muitos trabalhadores não têm um sítio onde viver condignamente, os seus patrões têm duas ou três casas em diferentes lugares do país. Enquanto uma grande parte dos trabalhadores só têm um fato decente, quando o têm, os seus patrões têm os guarda-fatos cheios de fatos. Enquanto os filhos dos trabalhadores se alimentam mal e muitas vezes prejudicam a sua saúde e a sua inteligência com isso, os filhos dos patrões deixam pratos cheios de comida que vai para o lixo, porque já estão fartos de comer. Porque é que um punhado de capitalistas acumula tanta riqueza, enquanto a maioria do povo tem apenas o indispensável para sobreviver?


Porque razão foram eles e não os trabalhadores que acumularam riqueza, quando foram estes últimos que extraíram as riquezas da natureza e, com o seu trabalho, produziram novas riquezas?


Para podermos responder a estas perguntas devemos deter-nos por momentos na análise do processo de produção, isto é, devemos analisar quais são os elementos que tornam possível a transformação da natureza em produtos úteis aos homens.

2. O processo de produção: força de trabalho e meios de produção


Para estudarmos todos os elementos que entram no processo de produção, tomemos O exemplo de uma costureira ou de um sapateiro.


Quando a costureira trabalha, o que faz? A costureira trabalha um determinado corte de pano para transformá-lo num vestido e para isso utiliza, por um lado, linha, botões, fecho éclair, etc., e, por outro lado, tesouras, agulha, máquina de costura. Para além disso tem necessidade de alugar uma casa para se instalar, e tem de iluminá-la e aquecê-la para poder trabalhar.


Definiremos cada um destes elementos do processo de produção da seguinte maneira: Chamaremos MATÉRIAS-PRIMAS aos objetos que são transformados no processo de produção, para constituírem o produto final.


No nosso exemplo as matérias-primas são: o pano, a linha, os botões, o fecho éclair, etc. Todos estes elementos passam a constituir o vestido, de uma maneira ou de outra são parte dele. Se faltar uma destas matérias-primas, a costureira não poderá produzir o vestido(1).


Chamaremos INSTRUMENTOS DE PRODUÇÃO a todas as coisas que direta ou indiretamente nos permitem transformar a matéria-prima em produto final.


Os instrumentos de produção que nos permitem transformar diretamente a matéria-prima são as ferramentas de trabalho e as máquinas. No nosso exemplo: as tesouras, a agulha, a máquina de coser.


Os instrumentos de produção que atuam de forma indireta, mas não menos necessária, são: os locais de trabalho, os meios de iluminação e aquecimento, etc.


Sem matéria-prima e sem instrumentos de produção, não se pode produzir nada. Eles são os meios materiais para realizar qualquer tipo de trabalho. Por isso, chamá-los-emos meios de produção.


Chamaremos MEIOS DE PRODUÇÃO a todos os objetos materiais que intervêm no processo de trabalho. Estes meios não devem ser confundidos com os bens de consumo, que são todos aqueles bens que se consomem de forma individual, por exemplo: alimentos, vestuário, habitação, artigos para o lar, artigos escolares, etc.


Detenhamo-nos agora a analisar o último elemento que intervém no processo de trabalho: a atividade humana realizada pelo trabalhador que utilizando os instrumentos de produção transforma a matéria-prima (o pano, no nosso exemplo) num produto final (o vestido, no nosso exemplo).


A nossa costureira, ao trabalhar, gasta energia física e mental.


A esta energia gasta durante o processo de trabalho chamaremos FORÇA DE TRABALHO.


A fadiga depois de um dia de trabalho não é senão a maneira como se manifesta fisicamente este gasto de energia que ocorre durante o processo de produção. A boa alimentação e o descanso permitem recuperá-la.


A análise de todos estes conceitos permite-nos chegar à conclusão de que os elementos fundamentais de todo o processo de produção são a força de trabalho do homem e os meios de produção. Estes elementos encontram-se presentes tanto no trabalho realizado pela nossa costureira, como no trabalho realizado na grande indústria moderna.


Mas existe uma diferença entre o trabalho isolado da costureira e o trabalho coletivo que realizam numerosos trabalhadores numa indústria moderna.


Qual é essa diferença?


O trabalhador isolado realiza ele mesmo todo o trabalho e tem um total domínio ou controle sobre este. A costureira faz todo o vestido sozinha e decide ela mesmo quando, onde e como trabalhar. Isto não acontece assim na grande indústria moderna, em que existe uma grande especialização do trabalho, em que os operários se dividem em grupos que realizam diferentes trabalhos parcelares, que, ao somar-se uns aos outros, dão o produto final. Assim, o automóvel, por exemplo, é fruto do trabalho combinado de muitos trabalhadores.

Ora bem, esta especialização do trabalho torna necessária a presença de um grupo de trabalhadores que tem por função ou tarefa principal coordenar os diferentes trabalhos especializados, do mesmo modo que o maestro coordena a ação dos diferentes músicos. Este trabalho de coordenação e controle vai desde as secções da fábrica até aos mais altos níveis. O nível mais alto é ocupado pelo administrador ou gerente da empresa; os outros níveis estão ocupados por uma série de chefes, capatazes, supervisores, etc.


«Do mesmo modo que os exércitos militares, o exército operário, comandado pelo capital, exige toda uma série de chefes (diretores, capatazes, contramestres) que durante o processo de produção dão as ordens em nome do capital»(2). Usaremos o termo trabalhadores indiretos para nos referirmos a estes trabalhadores que estão colocados na fábrica entre os operários e o patrão.


Em todos os processos de produção onde existe especialização devemos distinguir, por conseguinte, dois tipos de trabalhadores: por um lado os que trabalham desempenhando tarefas parcelares na transformação direta de matéria-prima, a que chamaremos TRABALHADORES DIRETOS; por outro lado, os que desempenham funções de coordenação, vigilância e controle, a que chamaremos TRABALHADORES INDIRETOS(3).


Perante o que vimos até aqui podemos concluir o seguinte:


Sem trabalho humano nada se produz. Porém, sem meios de produção o homem não pode trabalhar.


Depois de termos definido todos estes conceitos podemos voltar à nossa pergunta inicial:


Se são os trabalhadores que extraem as riquezas da natureza, se são eles que produzem novas riquezas, porque é que a maior parte destas riquezas vai parar a outras mãos, às mãos de um grupo minoritário da população?


3. A propriedade privada dos meios de produção, origem de toda a exploração


A esta pergunta só podemos responder se nos perguntarmos:


  • Nas mãos de quem é que estão os meios de produção?

  • Nas mãos de quem é que estão as fábricas?

O que podemos responder para já é que não estão nas mãos dos trabalhadores mas sim nas mãos do capital estrangeiro e do capital nacional.


E porque é que é importante fazermo-nos esta pergunta?


Porque os meios de produção, como observamos no ponto anterior, são as condições materiais de toda a produção. Sem estes meios não se pode produzir. E por isso os que conseguiram apropriar-se destes meios e conservá-los nas suas mãos podem obrigar os que os não possuem a submeter-se às condições de trabalho que eles fixem.


Para tornar isto mais claro vejamos um exemplo: o camponês que é dono de um pedaço de terra suficientemente grande para lhe permitir viver juntamente com a sua família e que é dono de instrumentos de produção, pode dedicar-se a trabalhar para si mesmo, não necessitando de ir a lado nenhum oferecer a sua força de trabalho.


Numa situação muito diferente está o camponês sem terra, o filho de uma família de pequenos agricultores, a quem o pedaço de terra da família não dá sustento. Vê-se obrigado a ir em busca de trabalho nos arredores e vai oferecer a sua força de trabalho ao latifundiário, dono de uma grande propriedade agrícola, que para a poder cultivar necessita de contratar mão-de-obra assalariada. O camponês sem terra, para não morrer de fome, tem de aceitar as condições de trabalho que o patrão lhe oferece. Tem de aceitar trabalhar a troco de um salário muito baixo, tem de aceitar que o patrão fique com uma parte importante dos frutos do seu trabalho(4).

O mesmo acontece com os operários que trabalham na indústria. Para poderem viver têm de oferecer a sua força de trabalho aos capitalistas: estes pagam-lhes um determinado salário e obtêm, graças ao seu trabalho, grandes lucros que não vão parar às mãos dos trabalhadores mas sim às mãos dos industriais. Se os operários reclamam o patrão diz-lhes: «De que é que se queixam? Contratei-os para trabalharem oito horas por dia a 10$00 à hora; não é o que lhes estou a pagar? Eu sou o dono desta fábrica! Se não gostam das condições de trabalho vão à procura de trabalho noutro sítio.» Mas como os operários sabem que em qualquer outro sítio lhes dirão o mesmo sujeitam-se a trabalhar para enriquecer o dono dos meios de produção.


Partindo dos exemplos vistos podemos dizer que no processo de produção se estabelecem determinadas relações entre os proprietários dos meios de produção e os produtores diretos ou trabalhadores. Os donos dos meios de produção exploram os que não possuem estes meios.


Ora bem, isto não acontece apenas no sistema capitalista mas também nos sistemas de produção que lhes são anteriores. No sistema escravagista, por exemplo, o amo era dono não só da terra e dos outros meios de produção mas também dos homens que trabalhavam na sua terra, que remavam nos seus barcos, que serviam nas suas casas.

Estes homens eram considerados pelo amo como mais um «instrumento de produção» e por isso obrigava-os a trabalhar até; ao limite das suas forças, dando-lhes de comer e permitindo-lhes descansar somente para recuperar a energia despendida durante o trabalho de modo a estarem prontos para trabalhar no dia seguinte.


No sistema servil, o senhor feudal, dono do meio de produção mais importante, a terra, entregava pequena parcela de terreno aos camponeses. Estes, em troca da terra recebida, eram obrigados a trabalhar nos terrenos do senhor um grande número de dias do ano sem receber nada como paga desse trabalho e deviam sobreviver com o que produzissem no seu pequeno terreno.


Em resumo, em todos os sistemas de produção que analisámos, em que os meios de produção estão nas mãos de um pequeno número de pessoas, os donos destes meios apropriam-se do trabalho alheio, exploram os trabalhadores, isto é, estabelecem-se relações de exploração entre estes grupos.


No entanto a exploração não existiu sempre. Nos povos primitivos, onde se produz apenas para sobreviver, não existe propriedade privada dos meios de produção; estes pertencem a toda a comunidade e os produtos obtidos através do trabalho dos seus membros são repartidos entre todos de forma igualitária.


Nestes povos não existem relações de exploração mas sim relações de colaboração recíproca entre todos os membros da sociedade.


A exploração não é, portanto, algo eterno, tem uma origem histórica bem determinada. Ela aparece quando, numa sociedade, um grupo de indivíduos consegue concentrar nas suas mãos os meios de produção fundamentais(5), despojando destes meios a maior parte da população. Ela desaparecerá quando desaparecer a propriedade privada dos meios de produção e estes passarem a ser propriedade coletiva de todo o povo(6).


4. As relações sociais de produção


Vimos até aqui como em todos os processos de produção se estabelecem determinadas relações entre os proprietários dos meios de produção e os trabalhadores ou produtores diretos.


A estas relações que se estabelecem entre os homens, determinadas pela relação de propriedade que estes têm com os meios de produção, chamaremos RELAÇÕES SOCIAIS DE PRODUÇÃO.


Podemos distinguir dois tipos fundamentais de relações sociais de produção: a relação explorador/explorado e as relações de colaboração recíproca.


a) A relação explorador/explorado.

A relação explorador/explorado existe quando os proprietários dos meios de produção vivem do trabalho dos produtores diretos. As principais relações de exploração são: as relações escravagistas, nas quais o amo é não só proprietário dos meios de produção como também da própria pessoa do escravo e, portanto, da sua força do trabalho; as relações servis, nas quais o senhor é o proprietário da terra e o servo depende dele e deve trabalhar gratuitamente para ele durante um certo número de dias por ano; e por último, as relações capitalistas, em que o capitalista é o proprietário dos meios de produção e o operário deve vender a sua força de trabalho para poder viver.


b) Relações de colaboração recíproca.

As relações de colaboração recíproca estabelecem-se quando existe propriedade social dos meios de produção e quando nenhum sector da sociedade explora outro. Por exemplo, as relações de colaboração recíproca que existem entre os membros das comunidades primitivas ou as relações de colaboração que caracterizam a sociedade comunista.


Ora bem, é importante esclarecer que as relações que se estabelecem entre os homens no processo de produção não são apenas relações sociais, relações humanas. São relações entre agentes da produção, isto é, entre homens que realizam tarefas bem determinadas na produção de bens materiais. Já vimos de que modo estas relações dependem da forma como estes agentes estão relacionados com os meios de produção: proprietários/não proprietários.


A relação que se estabelece entre os homens resulta da sua relação de propriedade com determinadas coisas: os meios de produção.


Enquanto os meios de produção forem possuídos por um pequeno número de pessoas as relações entre os homens que os possuem e os que não possuem não poderão deixar de ser relações de exploração, de opressão, isto é, relações antagônicas, relações em que os interesses de um grupo se opõem totalmente aos interesses do outro grupo.


Os interesses dos exploradores consistem em prosseguir a exploração dos trabalhadores para poderem continuar a gozar da sua situação de privilegiados. Os interesses dos trabalhadores dirigem-se no sentido da destruição dessa situação de exploração. Este é um ponto muito importante pois deita por terra todas as ilusões suscitadas por alguns acerca da "colaboração entre os operários e patrões". As relações entre operários e patrões não poderão ser fraternais, amistosas, enquanto as relações destes com os meios de produção não se modificarem, isto é, enquanto não se termine com a propriedade privada capitalista dos meios de produção; porém nessa altura o patrão como tal também desaparecerá. As relações sociais de produção são, portanto, relações que se estabelecem independentemente da vontade ou do desejo dos homens O capitalista explora e explorará o operário mesmo que não o queira fazer, mesmo que pessoalmente lute contra essa exploração, pois as leis do sistema capitalista são inflexíveis. Se o capitalista paga salários muito elevados e, apesar disso mantém os mesmos preços para poder vender está a diminuir os seus lucros. Porém, uma parte dos lucros deve ser reinvestida na empresa para poder aperfeiçoar a sua tecnologia e desse modo poder competir com os seus concorrentes no mercado. O que acontece então é que este capitalista vai ficando para trás até que chega o momento em que já não pode competir com os preços mais baixos dos outros capitalistas que melhoraram as suas indústrias e, portanto, vai à falência.


Portanto no sistema capitalista apenas se apresenta uma alternativa aos trabalhadores: «ou a sua exploração ou a morte dos empresários».


Ora bem, quando o marxismo afirma que ó necessário destruir as relações capitalistas de produção, que é necessário que «o empresário morra» não está a afirmar que os capitalistas devem ser destruídos fisicamente. A afirmação corresponde a algo muito diferente; o que deve desaparecer não é a pessoa do capitalista mas sim a exploração, isto é, o papel de explorador que este desempenha. Se o capitalista aceita ser expropriado e oferece os seus serviços ao novo sistema económico que se pretende implantar, desaparecerá como capitalista, como explorador, mas não desaparecerá como homem, pelo contrário, pode agora cumprir uma função de verdadeiro serviço à sociedade.


5. A reprodução das relações sociais de produção: papel do Estado e da Ideologia


As relações que se estabelecem entre os homens no processo de produção vão-se repetindo sem interrupção porque criam as condições necessárias à sua continuação: amos e escravos, senhores e servos, capitalistas e operários. Isto é aquilo a que se chama reprodução das relações de exploração.


Mas ao mesmo tempo que as relações de produção se repetem ou reproduzem vão-se desenvolvendo as contradições internas destes sistemas. Por exemplo, no sistema capitalista geram-se contradições entre a riqueza e a miséria, entre as imensas possibilidades da produção e as limitações do consumo, entre os operários e os capitalistas, etc. É o desenvolvimento destas contradições que permite a destruição do sistema(7).


De que maneira conseguem os exploradores manter a exploração do povo?


Como é que os exploradores fazem para que estas relações de exploração se repitam continuamente?


Fazem-nos exclusivamente por intermédio da propriedade privada dos meios de produção?


Até este momento vimos que o facto dos meios de produção estarem nas mãos de uma minoria, os capitalistas, explica a situação de exploração em que vive a maioria: os trabalhadores.


Pelo facto de serem os donos dos meios de produção, os capitalistas têm na sua mão o poder económico e, como são senhores deste poder, controlam também outros aspectos da sociedade. O Estado, por exemplo, não é um aparelho neutro, ao serviço de toda a sociedade, como os capitalistas nos pretendem fazer crer. O Estado sempre tem servido os interesses daqueles que detêm o poder económico. No nosso país os governos capitalistas usaram com frequência o exército, a polícia, a G. N. R., para reprimir os trabalhadores quando as suas lutas punham em perigo o seu sistema de domínio: são testemunhas mudas destes factos os inúmeros massacres em a classe operária derramou o seu sangue. Por outro lado, todos os trabalhadores sabem que nunca existiu uma justiça igual para todos os portugueses, que existe a lei do pobre e a lei do rico. Se um grande latifundiário proprietário rouba a terra a um pequeno camponês passam-se anos sem que a justiça se mexa para a devolver. Se os camponeses recuperam a terra que lhes havia sido roubada a polícia intervém para repor a ordem, isto é, para repor uma situação em que os interesses dos grandes proprietários da terra não fiquem prejudicados.


Os donos dos meios de produção, tendo nas suas mãos o poder económico, têm nas suas mãos o Estado com todo o seu aparelho: exército, polícia, tribunais, funcionários públicos, etc. Tem nas suas mãos portanto não só o poder económico como também o poder político.


Para além de controlarem o Estado e as leis, os donos dos meios de produção mais importantes controlam também as emissoras de rádio, os jornais, a televisão, as editoras de livros, etc., isto é, os meios de comunicação de massa. E também controlam o conteúdo dos programas de ensino em todos os níveis.


Através deste controle dos meios de e de difusão de ideias, enganam o povo convencendo-o de que o sistema de explorarão em que vivem é bom, e que se eles vivem em más condições tal facto não se deve ao sistema mas sim a defeitos individuais: preguiça, embriagues, falta de capacidade intelectual, etc. A este controle dos meios de difusão de ideias e de educação chamamos poder ideológico.


Ora os capitalistas põem tanto o seu poder político como o seu poder ideológico ao serviço dos seus interesses económicos. Como os capitalistas obtêm os seus lucros à custa do trabalho dos operários, usam o seu poder político e ideológico para que esta situação se mantenha, isto é, para facilitar a reprodução destas relações de produção. Deste modo, todas as estruturas da sociedade têm como função fundamental reproduzir as relações de exploração, isto é, estão ao serviço do grupo explorador contra os explorados.


É por isso que o marxismo afirma que não existe difusão de ideias de tipo neutro, que não existe um Estado ao serviço de todo o povo, que tanto o Estado como a ideologia estão ao serviço dos interesses económicos das classes exploradoras. Por conseguinte, não se pode eliminar a propriedade privada dos meios de produção se não se destruir o poder político e ideológico que a defende.


6. Modo de produção. Infraestrutura e superestrutura


Até aqui vimos que para explicar a origem da desigualdade na repartição das riquezas num determinado país tivemos de analisar o modo como nesse país se produziam os bens materiais. Em todas as sociedades a produção dos bens materiais efetua-se debaixo de determinadas relações de produção: escravagistas, feudais, capitalistas, etc.


Além disso vimos que estas relações não mudam todos os dias, antes pelo contrário, tendem a manter-se e a reproduzir-se. Nesta reprodução que se dá ao nível da economia, intervêm outros elementos sociais: as leis, a justiça, as ideias, etc., que pertencem a um nível diferente da sociedade.


O conjunto destes elementos económicos, jurídicos, políticos e ideológicos constitui a sociedade. Todas as sociedades são, portanto, organizações complexas em que existem dois níveis: um nível económico e um nível jurídico-político-ideológico. Ambos se conjugam para manter o funcionamento da sociedade no seu conjunto. No entanto estes níveis não têm a mesma importância para o funcionamento da sociedade. Vimos que o nível económico — a forma como os homens produzem os bens materiais e as relações que se estabelecem entre eles no processo de produção — é o nível fundamental, aquele que determina todo o funcionamento da sociedade; são as relações que se estabelecem entre os proprietários dos meios de produção e os trabalhadores que nos revelam o segredo mais escondido a base mais oculta de toda a sociedade e são elas que nos explicam porque é que surgem determinadas formas de Estado e determinados tipos de ideias nessa sociedade. Um dos grandes contributos de Marx e de Engels foi precisamente o terem descoberto que a sociedade se organiza de acordo com a forma como os homens produzem os bens materiais, ou mais precisamente, segundo as relações de produção que se estabelecem no processo de produção e que são estas relações que mudam de um tipo de sociedade para outra.

Para exprimir de forma científica estas descobertas, Marx, no seu estudo da sociedade capitalista, falava da sociedade como um «modo de produção». Deste modo, consoante as relações de produção de acordo com as quais as sociedades se organizam, assim falamos de modo de produção escravagista, servil ou feudal, capitalista, socialista, etc.


Em resumo:


Em toda a sociedade entendida como «modo de produção», distinguimos dois níveis fundamentais: o nível económico e o nível jurídico-político-ideológico.


De entre estes dois níveis, é o nível económico que desempenha o papel fundamental dentro da sociedade, é o nível económico a base sobre a qual se levanta todo o edifício social.


Por isso chamaremos «infraestrutura» ao nível económico. Ao outro nível, formado por elementos jurídico-políticos (Estado, direito, etc.) e ideológicos (ideias e costumes sociais), chamaremos «superestrutura».


Por outro lado, como vimos, a infraestrutura determina a superestrutura. Isto significa que o Estado, as leis, as ideias que se difundem numa sociedade não são elementos neutros, ao serviço de todos, mas sim elementos que estão ao ser viço da infraestrutura económica, permitindo a esta a sua reprodução contínua.


7. Modo de produção e formação social

Até aqui quando usámos a palavra sociedade referimo-nos sempre a uma sociedade em que havia um único tipo de relações de produção: escravagistas, servis ou capitalistas.


Mas existem ou existiram na realidade sociedades tão puras? Existem sociedades em que reine um único tipo de relações de produção?


Se, por exemplo, pensarmos em Portugal há uns anos atrás, constatamos que juntamente com as relações de produção capitalistas, que se encontravam principalmente nos centros urbanos e mineiros, as relações de produção que existiam no campo entre latifundiários e camponeses estavam muito mais próximas da servidão que do capitalismo, eram relações semi-servis; o camponês não era livre, não vendia a sua força de trabalho por um salário, mas devia sim trabalhar a terra do patrão com as suas próprias ferramentas, para receber em troca um pedaço de terra onde viver e do qual se pudesse alimentar.


Por outro lado, além dos capitalistas e dos operários, dos latifundiários e dos camponeses, existiam inúmeras pessoas que se dedicavam a fazer objetos em suas próprias casas ou a cultivar a sua própria terra, levando seguidamente os seus produtos ao mercado; estes artesãos e pequenos agricultores trabalhavam como pequenos produtores independentes ligados ao mercado.


Constatamos assim que nessa época podíamos afirmar que em Portugal existiam vários tipos diferentes de relações de produção: capitalistas, semi-servis, pequena produção independente, etc.


O que acontecia em Portugal há anos atrás ocorre ainda hoje se bem que com algumas diferenças pois a maior parte das relações semi-servis vão desaparecendo gradualmente para se transformarem em relações capitalistas.


Os camponeses trabalham hoje como os operários industriais, com ferramentas pertencentes ao patrão e recebendo a maior parte do pagamento do seu trabalho sob a forma de salário, se bem que ainda se conservem muitas influências de carácter ideológico das relações de produção anteriores.

Noutros países existem relações semi-servis no campo e nalguns existem mesmo grupos que vivem em comunidades onde as relações de colaboração recíproca são as mais importantes.


Então porque é que ao falarmos da sociedade nos referimos sempre a sociedades em que existe um único tipo de relações de produção?


Porque para compreender o que é a sociedade e distinguir um tipo de sociedade de outro usamos o método cientifico de explicar as coisas por meio de conceitos, isto é, investigamos qual é o elemento fundamental que determina a organização e funcionamento da sociedade e qual é o elemento fundamental que caracteriza cada um dos diferentes tipos de sociedade. Concluímos que este elemento fundamental são as relações de produção e que cada sociedade se distingue da outra por ter determinado tipo de relações de produção.


É para poder estabelecer esta distinção entre os diferentes tipos de sociedade que nos referimos a um único tipo de relações de produção em cada caso.


Isto leva a considerar a sociedade como «modo de produção».


Chamaremos MODO DE PRODUÇÃO ao conceito científico de sociedade que nos indica como ela se organiza com base nas relações de produção.


Com esta ideia clara que temos da sociedade, isto é, com os conceitos científicos que alcançámos, podemos estudar as sociedades concretas, por exemplo, Portugal. Neste caso já não se trata de compreender o que é uma sociedade ou de saber que existem diferentes tipos de sociedades mas sim de estudar uma sociedade que existe e que temos de conhecer para poder transformar.


É para fazer isto, para conhecer uma sociedade real, que necessitamos dos conceitos científicos de sociedade; eles são os instrumentos que usamos para conhecer e transformar a realidade social.


Em todas as sociedades reais encontramos simultaneamente diferentes relações de produção dominando uma delas as restantes.


Por isso o mais importante é assinalar por meio do estudo dessa sociedade em particular, qual é a relação de produção dominante e de que maneira domina as restantes.


São estas relações dominantes que permitem caracterizar uma sociedade determinada. Por exemplo, quando falamos de Portugal dizemos que é um país capitalista. Fazemos igual afirmação relativamente a todos os países da Europa. Isto não significa que nestes países apenas existam relações de produção capitalistas. Também existem, como vimos, outras relações de produção que desempenham um papel secundário e que se vão desagregando à medida que se desenvolvem as relações de produção capitalistas.


Estas relações de produção diferentes dão origem a grupos sociais diferentes. Estes grupos sociais que se diferenciam entre si pelo lugar que ocupam na produção dos bens materiais, denominámo-las classes sociais(8).


Portanto, nesta sociedade concreta, a infraestrutura ou nível económico não é uma infraestrutura simples, formada por um só tipo de relações de produção, mas uma infraestrutura complexa em que há diferentes relações de produção. Isto implica que a superestrutura ou nível jurídico-político e ideológico, seja também complexa. Nela, juntamente com elementos dominantes que estão determinados pelas relações de produção dominantes, existem elementos secundários, determinados pelas outras relações de produção. O poder político, por exemplo, não resulta sempre do domínio puro de uma única classe mas pode resultar do domínio conjunto de duas ou mais classes contra os sectores explorados.


Quando estudamos ou falamos de uma sociedade real, de um determinado país, num momento determinado da sua história e em que existem diferentes relações de produção, utilizamos o termo «formação social».


Chamaremos FORMAÇÃO SOCIAL a toda a sociedade historicamente determinada.


Resumindo, analisámos qual a diferença entre o conceito de sociedade ou modo de produção e uma sociedade historicamente determinada ou formação social.


Estes conceitos permitem-nos compreender que para estudar uma formação social devemos dirigir a nossa atenção em primeiro lugar para o estudo do modo como se produzem nessa sociedade os bens materiais, quais são as relações de produção que ocorrem, qual destas relações é a dominante, que efeitos produzem estas relações nos níveis político, ideológico, etc. Para realizar este estudo devemos observar a realidade concreta, procurar dados concretos, estatísticos ou de outro tipo, e estudá-los usando 08 conceitos que vimos. Não devemos nunca confundir estes conceitos com a realidade que estamos a estudar, isto é, não devemos nunca aplicar de forma cega e mecânica esquemas puros.


Não devemos, por exemplo, confundir a sociedade portuguesa com o conceito puro de modo de produção capitalista; já vimos que em Portugal existem outras relações de produção além das relações de produção capitalistas.


Além disso, se estudarmos estas relações de produção observando de forma concreta a nossa realidade, descobriremos que elas estão deformadas e submetidas às relações capitalistas dos países mais avançados(9).


Para concluir devemos afirmar que o conceito de modo de produção nos indica que em todas as formações sociais os elementos da superestrutura ajudam a manter e a reproduzir as relações de produção, mas em cada caso este facto tem características particulares.


Por isso, a luta dos trabalhadores contra a exploração económica exercida pelas, classes dominantes requer, para ter êxito, que se conduza ao mesmo tempo uma luta para destruir também os aparelhos por meio dos quais se exerce o poder político e ideológico das classes exploradoras. Exige, além disso, um conhecimento profundo da maneira como se exerce este domínio nesse país.


Esta luta dos trabalhadores contra a exploração vai sendo facilitada pois simultaneamente com a tendência para a reprodução das relações de produção surgem, no seio da própria sociedade capitalista, as condições que conduzem à sua destruição; agudizam-se as suas contradições internas e crescem e fortalecem-se as classes sociais que farão desaparecer este sistema de exploração.


Por isso os trabalhadores devem preparar-se para uma longa batalha e para utilizar todas as formas de luta que sejam necessárias para destruir definitivamente toda a exploração. Fonte: marxist.org



 

Notas de rodapé: (1) De um ponto de vista mais vigoroso, seria necessário distinguir entre matéria-prima e matéria bruta. Esta última é a que se encontra na natureza, sem ter sido submetida a nenhum trabalho humano. Exemplo: o carvão no fundo das minas; os bosques que servirão para extrair madeira, etc. Matéria-prima é aquilo que já sofreu um trabalho anterior: o carvão já extraído da mina; a madeira já cortada, etc.


(2) «O Capital», Livro I — Edições Centelha — Coimbra.


(3) Entre estes tipos de trabalhadores criam-se determinadas relações, a que chamaremos RELAÇÕES TÉCNICAS DE PRODUÇÃO, que dependem do controle que os indivíduos tenham dos instrumentos de produção e do processo de produção no seu conjunto. No sistema capitalista desenvolvido, os trabalhadores diretos não controlam as máquinas porque são elas que impõem aos operários o seu próprio ritmo, a sua própria eficiência técnica. Os trabalhadores diretos também não controlam nem o andamento nem a finalidade do processo de produção: é o capitalista, por intermédio dos trabalhadores indirectos, que decide quando, como e quanto se deve produzir tendo em consideração exclusivamente os seus interesses capitalistas (desenvolveremos este tema mais amplamente no Caderno n.° 4, «Luta de Classes» e no Caderno n.° 6, «Capitalismo e Socialismo»). (4) No caderno n.° 2, «A Exploração Capitalista», desenvolver-se-ão as causas desta situação.


(5) Para que isto aconteça é necessário que essa sociedade tenha alcançado um grau de desenvolvimento económico que permita pelo menos, obter um excedente, ou seja, que permita obter mais produtos do que os necessários para o consumo imediato; este excedente é apropriado por esse grupo.


(6) As condições materiais desta passagem serão analisadas no Caderno n.° 6, «Capitalismo e Socialismo».


(7) Este assunto será desenvolvido no Caderno n.° 6: «Capitalismo e Socialismo».


(8) O caderno de Educação Popular n.° 4: «Luta de Classes», aprofunda este tema.


(9) No Caderno n.° 5 desenvolveremos este ponto.

 




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