Em Defesa da Revolução Africana
Frantz Fanon
A um observador que acompanhe, há dois anos, a evolução do continente africano impõe-se com particular evidência a seguinte conclusão: os povos dependentes vergados por uma dominação estrangeira têm progressivamente acesso à soberania nacional.
Depois do Ghana, da Guiné, tomam-se independentes os Camarões sob mandato francês, o Togo, a Somália sob mandato italiano e a Nigéria. As agitações da recente Comunidade Francesa, as reivindicações francas, ou por vezes veladas, dos dirigentes dos diferentes países da Comunidade não permitem qualquer dúvida. Poder-se-ia dizer que se iniciou um processo irreversível, se confiássemos nas fórmulas estereotipadas.
A mão da história é a mão do homem
Os observadores não estrangeiros contentam-se, pois, com a esperança generalizada no desenvolvimento histórico daquilo à que se chamou o processo objetivo de descolonização, enquanto, mais ou menos implicitamente, se pede aos Africanos que confiem na boa vontade dos antigos senhores e que, de qualquer modo, não desesperem das necessidades históricas que ritmam a reconversão da opressão colonial.
É rigorosamente verdade que a descolonização se efetua, mas é rigorosamente falso pretender e acreditar que esta descolonização seja fruto de uma dialética objetiva que toma mais ou menos rapidamente as aparências de um mecanismo absolutamente inaceitável.
O otimismo que hoje reina em África não é um otimismo nascido do espetáculo de forças da natureza tornadas finalmente benéficas aos Africanos. Também não se deve este otimismo à verificação, no antigo opressor, de disposições menos inumanas e mais benevolentes. O otimismo em África é o produto direto da ação revolucionária, política ou armada — muitas vezes das duas simultaneamente — das massas africanas.
Compreende-se agora por que razão cada nacionalista africano tem essa obsessão de conferir constantemente uma dimensão africana à sua ação. É que a luta pela liberdade e pela independência nacional está dialeticamente ligada à luta contra o colonialismo em África.
O inimigo do Africano sob dominação francesa não é o colonialismo exercido nos limites estritos da sua nação, mas são as formas do colonialismo, são as manifestações do colonialismo, seja qual for a bandeira à sombra da qual este se exerça e domine.
Uma grande parte da humanidade foi recentemente abalada nas suas convicções mais profundas perante a expansão de uma ideologia: o nazismo, que ressuscitou os métodos de tortura e de genocídio dos tempos mais recuados.
Os países mais imediatamente visados pelas manifestações do nazismo uniram-se e comprometeram-se, não só a libertar o seu território ocupado, mas também a quebrar literalmente os rins ao nazismo, a extirpar o mal onde ele tinha surgido, a liquidar os regimes que tinha suscitado.
Pois beml Os povos africanos também se devem lembrar de que foram confrontados com uma forma de nazismo, com uma forma de exploração do homem, de liquidação física e espiritual lucidamente conduzida; lembrar que as manifestações francesa, inglesa e sul-africana deste mal devem preocupá-los, mas que devem também comprometer-se a enfrentar este mal enquanto mal no conjunto do território africano.
Os países europeus estão hoje preocupados com o problema da paz. Depois de os blocos de leste e de oeste se terem armado o mais que podiam, os ocidentais apercebem-se horrorizados de que todo o novo conflito mundial poria em questão a própria existência da vida na terra. Por isso torna-se indispensável uma confrontação pacífica das duas concepções do mundo.
Foi nesta perspectiva que o general Eisenhower fez a sua última viagem, que o conselho da OTAN se reuniu em Paris, e que uma cimeira se fixou para os primeiros meses de 1960.
Nós, Africanos, dizemos que o problema da paz entre os homens, na ocorrência não africanos, é fundamental, mas dizemos também que a libertação da África dos últimos bastiões do colonialismo constitui o primeiro problema.
Quando nós, Africanos, dizemos que somos neutros quanto às relações Leste-Oeste, queremos dizer que, de momento, a única questão que nos preocupa é a do nosso combate contra o colonialismo. Isto quer dizer que não somos de modo nenhum neutros perante o genocídio que a França faz na Argélia ou perante o apartheid na África do Sul.
A nossa neutralidade significa que não temos de tomar posição a favor ou contra a OTAN, a favor ou contra o Pacto de Varsóvia.
No âmbito do nosso combate anticolonialista, apenas temos em conta a firmeza do nosso compromisso e do apoio que este ou aquele país nos dá. E nesse âmbito podemos dizer que os povos agrupados sob a expressão de países de leste nos apoiam muito firmemente e que os países ocidentais multiplicam as ambiguidades.
Armas e homens
Os povos africanos estão concretamente empenhados numa luta global contra o colonialismo e nós, Argelinos, não dissociamos o combate que travamos do dos Rodesianos ou dos Quenianos. A nossa solidariedade para com os nossos irmãos africanos não é verbal. Não se traduz pelo voto, pela aclamação numa reunião internacional de resoluções ou de condenações. Os países colonialistas, quando estavam em perigo e quando o fascismo e o nazismo os submergiam, portanto, quando a sua liberdade e a sua independência estavam ameaçadas, não hesitaram em ir buscar as massas africanas e em lançar contra as posições nazis uma maioria dos seus “colonizados”. Hoje, são a liberdade e a independência nacional dos Africanos que se encontram em questão.
A solidariedade interafricana deve ser uma solidariedade de fato, uma solidariedade de ação, uma solidariedade concreta em homens, em material, em dinheiro.
A África será livre. Sim, mas é preciso que se atire ao trabalho, que não perca de vista a sua própria unidade. Foi neste espírito que se adotou, entre outros, um dos pontos mais importantes da Primeira Conferência dos Povos Africanos, em Accra, em 1958. Os povos africanos — dizia-se nessa resolução — comprometem-se a constituir uma milícia encarregada de apoiar os povos africanos em luta pela sua independência.
Não foi por acaso que esta resolução foi escamoteada pela imprensa ocidental. A violência das democracias ocidentais durante a sua guerra contra o nazismo, a violência dos Estados Unidos da América em Hiroxima com a bomba atómica, sem serem um exemplo, dão uma ideia daquilo que as democracias podem empreender quando a sua vida está em perigo.
Nós, Africanos, dizemos que há mais de cem anos a vida de 200 milhões de Africanos é uma vida depreciada, uma vida contestada, uma vida perpetuamente assombrada pela morte. Dizemos que não devemos confiar na boa-fé dos colonialistas, mas que devemos armar-nos de firmeza e de combatividade. A África não será livre pelo desenvolvimento mecânico das forças materiais, mas é a mão do Africano e o seu cérebro que desencadeiam e levarão a bom termo a dialética da libertação do continente.
A alguns dias da Segunda Conferência dos Povos Africanos, que se realizará às portas da Argélia a ferro e fogo, os Africanos devem lembrar-se de que não há um otimismo objetivo que se imponha de maneira mais ou menos mecânica, mas que o otimismo deve ser o sentimento que acompanha o compromisso revolucionário e o combate.
Nestas condições, sim, podemos ser otimistas.
Fonte: marxists.org
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