(uma carta para a juventude operária)
Alexandra Kollontai
1923
I - O AMOR COMO FATOR SOCIAL E PSÍQUICO
Jovem camarada: me perguntas que lugar corresponde ao amor na ideologia proletária. Admira-te o fato de que nos momentos atuais a juventude trabalhadora “se preocupe muito mais com o amor e todas as questões a ele relacionadas” que os grandes assuntos que a República dos operários tem por resolver. Se isto é assim — dificilmente posso apreciar de longe —, busquemos juntos a explicação deste feito e vamos encontrar a resposta para este primeiro problema: que lugar tem o amor na ideologia da classe operária?
É fato verdadeiro que a Rússia Soviética entrou em uma nova etapa de guerra civil. A frente revolucionária foi deslocada. Na atualidade, a luta deve livrar-se entre duas ideologias, entre duas civilizações: a ideologia burguesa e a proletária. Sua incompatibilidade se mostra cada vez com maior claridade. As contradições entre estas duas civilizações diferentes se aguçam a cada dia.
O triunfo dos princípios e ideias comunistas no campo da política e da economia tinha inescapavelmente que ser a causa de uma revolução nas ideias sobre a concepção do mundo, nos sentimentos, em toda criação espiritual da humanidade produtora. Já hoje se pode apreciar uma transformação destas concepções da vida, da sociedade, do trabalho, da arte e das “nossas normas de condutas”, isto é, da moralidade. As relações sexuais constituem uma parte importante destas normas de conduta. A revolução na frente ideológica colocará ponto final a transformação realizada no pensamento humano durante os cinco anos de vida da República dos trabalhadores.
Não obstante, a medida que se acirra a luta entre as duas ideologias: a burguesa e a proletária; a medida que esta luta se expande e abarca novos domínios, apresentam-se, ante a humanidade, novos “problemas da vida” que unicamente a classe operária poderá resolver de forma plena. Encontram-se entre estes múltiplos problemas, jovem camarada, o que tu aponta: “o problema do amor”, que nas diversas fases de seu desenvolvimento histórico, a humanidade pretendeu resolver por procedimentos diversos. Porém, “o problema” persistia: variavam, única e exclusivamente, suas intenções de solução, que diferem, obviamente, segundo o período, a classe e o que lhe constituía o “espírito da época” ─ ou dito de outra forma, a cultura.
Na Rússia, durante anos de intensa guerra civil e de luta contra a desorganização econômica, e até recentemente, apenas alguns estavam interessados neste problema. Eram outros sentimentos, outras paixões mais reais as que preocupavam a humanidade trabalhadora. Quem havia sido capaz de preocupar-se seriamente dos pesares e sofrimentos do amor através daqueles anos em que o fantasma descarnado da morte cercava a todos? Durante aqueles anos, o problema vital se resumia em saber: quem vencerá? A revolução (o progresso) ou a contrarevolução (o reacionarismo)?
Diante do aspecto sombrio do enorme conflito, da revolução, o delicado Eros tinha ferozmente que desaparecer de uma forma apressada. Não havia oportunidade nem energias psíquicas para refugiar-se nas “alegrias” e “torturas” do amor. A humanidade responde sempre a uma lei de conservação da energia social e psíquica. E esta energia se aplica sempre ao fim fundamental e imediato do momento histórico. Por isso, durante estes anos se adiou da situação a voz, simples e natural, da Natureza, o instinto biológico da reprodução, a atração entre dois seres de sexo contrário. O homem e a mulher se uniam e se separavam facilmente, muito mais facilmente que no passado. O homem e a mulher se entregavam mutuamente, sem estremecimento em suas almas, e se separavam sem lágrimas nem dor.
É certo que desaparecia a prostituição; mas, em troca, aumentavam as uniões livres entre os sexos, uniões sem compromissos mútuos, e nas quais o fator principal era o instinto de reprodução, desprovido da beleza e dos sentimentos de amor. Muitos foram os que diante deste fato sentiram espanto; mas é evidente que durante aqueles anos as relações entre os sexos não podiam ser de outro modo. Não podiam se dar mais que duas formas de união sexual: o matrimônio consolidado durante vários anos por um sentimento de camaradagem, de amizade conservada através dos anos, e que, precisamente, pela seriedade do momento, convertia-se em um vínculo de união mais firme, ou, ao contrário, as relações matrimoniais que surgiam para satisfazer uma necessidade puramente biológica e constituíam simplesmente um capricho passageiro, do que ambas as partes se saciavam logo, e que se apressavam a terminar rapidamente, a fim de não obstaculizar-se o fim essencial da vida: a luta pelo triunfo da revolução.
O brutal instinto de reprodução, a simples atração dos sexos, que nasce e desaparece com a mesma rapidez, sem criar laços sentimentais nem espirituais, é esse Eros “sem asas”, que não absorve as forças psíquicas que o exigente Eros “alado” consome, amor tecido com emoções diversas que foram sido forjadas no coração e no espírito. O Eros “sem asas” não emenda noites de insônia, não faz vacilar a vontade nem enche de confusão o frio trabalho do cérebro. A classe formada pelos lutadores não podia deixar-se levar pelo Eros de asas abertas naqueles momentos de transtornos da revolução que chamavam sem cessar ao combate a humanidade trabalhadora; durante aquelas jornadas era inoportuno desperdiçar as forças psíquicas dos membros da coletividade que lutava, em sentimentos de ordem secundária, que não contribuíam de uma maneira direta com o triunfo da revolução. O amor individual, que constitui a base do matrimônio, que se concentra em um homem ou em uma mulher, exige uma perda enorme de energia psíquica. Durante aqueles anos de luta, a classe operária, artífice da nova vida, não estava interessada somente na maior economia possível de suas riquezas materiais, senão que intentava economizar também a energia de cada um de seus membros para aplicar-lhe as tarefas gerais da coletividade. Não é outra a razão pela qual, durante o período agudo da luta revolucionária, o “Eros alado”, que arrasa tudo em seu caminho, tivesse sido substituído pelo instinto pouco exigente da reprodução, pelo Eros desprovido de asas.
Agora o quadro é completamente distinto. A URSS, e com ela toda a humanidade trabalhadora, entrou em um período de relativa calma. Começa agora um trabalho essencialmente complexo, posto que se trata de fixar e compreender de uma maneira definitiva tudo que foi criado, adquirido, conquistado. O proletariado, arquiteto das novas formas de vida, se vê obrigado a tirar uma lição de todo fenômeno social e psíquico. Deve, portanto, compreender também este fenômeno, assimilar-lo, apropriar-se e transformá-lo em mais uma arma para a defesa de sua classe. Só depois de ter assimilado as leis que presidem a criação das riquezas materiais e as que dirigem os sentimentos da alma poderá o proletariado entrar na briga armado até os dentes contra o velho regime burguês. Só então a humanidade assalariada poderá vencer na frente ideológica como triunfou na militar e na do trabalho.
Uma vez consolidado o triunfo da revolução russa, começa a aclarar a atmosfera do combate revolucionário, e o homem já não se entrega inteiramente à luta, o terno de Eros de “asas abertas”, desprezado durante os anos de agitação, reaparece de novo e reclama seus direitos. Atreve-se a sair de novo da sombra do insolente Eros “sem asas”, do instinto de reprodução, que desconhece os encantos do amor, porque ele não mais satisfaz as necessidades dos homens. Neste período de relativa calma se acumulou um excedente de energia que os homens do presente, mesmo os representantes da classe trabalhadora, não sabem, entretanto, aplicar à vida intelectual da coletividade. Este excedente de energia psíquica busca sua saída nos sentimentos amorosos. A lira de múltiplas cordas do deus alado do Amor apaga de novo o som da monótona voz do Eros “sem asas”. O homem e a mulher não se unem mais como durante os anos da revolução, não buscam uma união passageira para satisfazer seus instintos sexuais, até que começam a viver de novo “novelas de amor”, com todos os sofrimentos e o êxtase amoroso que vão acoplados ao Eros alado.
Na República Soviética, estamos testemunhando um crescimento patente nas necessidades intelectuais; se sente mais avidez para o saber a cada dia; as questões científicas, o estudo da arte, o teatro, despertam todo o nosso interesse. Esta ânsia de pesquisa sentida na República Soviética para encontrar novas maneiras de encerrar as riquezas intelectuais da Humanidade inclui também, naturalmente, a esfera dos sentimentos amorosos. Observa-se, pois, um despertar de interesses em tudo o que se refere a psicologia sexual, isto é, ao “problema do amor”. Esta é uma fase da vida da qual participam com maior ou menor intensidade todos os indivíduos. Observa-se com assombro como militantes, que há algum tempo não liam mais que dois artigos editoriais do diário Pravda, agora leem com fruição livros onde se canta ao “deus Eros de asas abertas”
Podemos interpretar isto como sintoma de reação? Talvez como sinal de decadência da ação revolucionária? De modo algum. Já é tempo de rejeitarmos de uma vez por todas toda a hipocrisia do pensamento burguês. Chegamos ao momento de reconhecer amplamente que o amor não é só um poderoso fator da natureza, que não é somente uma força biológica, mas também social. O amor é, por essência, um sentimento de caráter profundamente social. O certo é que o amor, em suas diferentes formas e aspectos, constituiu em todos os graus do desenvolvimento humano uma parte indispensável e inseparável da cultura intelectual de cada época. Mesmo a burguesia, que às vezes reconhece que o amor é “um assunto de ordem privada”, na realidade como acorrentar o amor aos seus padrões morais para que sirva a afirmação de seus interesses de classe.
Porém há outro aspecto dos sentimentos amorosos ao qual a ideologia da classe trabalhadora deve atentar-se com maior importância. Nos referimos ao amor considerado como um fator do qual se pode obter benefícios a favor da coletividade, o mesmo que qualquer outro fenômeno de caráter social e psíquico. Que o amor não é, de modo algum, um “assunto privado” que interesse somente a dois corações isolados, mas, ao contrário, que o amor supõe um princípio de união de valor inestimável para a coletividade, evidenciado com o fato de que em todos os graus de seu desenvolvimento histórico a Humanidade estabeleceu pautas que especificam quando e em que condições o amor era considerado “legítimo” (quer dizer, quando correspondia aos interesses da coletividade), e quando tinha que ser condenado como “culpado” (isto é, quando o amor conflitava com os princípios da sociedade).
II - UM POUCO DE HISTÓRIA
A Humanidade começou, quase desde tempos antigos, a estabelecer regras que regulavam não somente as relações sexuais, como também os sentimentos amorosos.
Na etapa do patriarcado, a virtude, moral suprema dos homens, era o amor determinado pelos vínculos de sangue. Naquela época, uma mulher que se sacrificava por seu marido ou amante merecia a desaprovação e o desprezo da família ou tribo a que pertencia. Ao invés disso, era atribuída uma grande importância aos sentimentos amorosos por um irmão ou irmã. A Antígona dos gregos enterrava os cadáveres de seus irmãos mortos correndo risco de vida. Este fato apenas tornava Antígona uma heroína aos olhos de seus contemporâneos. A sociedade burguesa de nossos tempos qualificaria esta ação, terminada pela irmã e não pela esposa, como algo escandaloso e um tanto impróprio. Durante os anos de domínio da sociedade patriarcal e da formação das estruturas do Estado, o sentimento de amor foi, sem dúvida de qualquer espécie, a amizade entre dois indivíduos da mesma tribo. Era de uma importância transcendental para a coletividade, que mal havia passado da fase de organização puramente familiar e, portanto, ainda se sentia socialmente frágil, que todos os seus membros estivessem unidos por sentimentos de amor e laços espirituais.
As emoções do espírito que respondiam melhor a esta finalidade eram as determinações do amor-amizade e não dos sentimentos amorosos das relações sexuais. Durante este período, os interesses da coletividade exigiam a Humanidade o crescimento e acumulação de laços espirituais, não entre os casais unidos em matrimônio, mas entre os organismos da mesma tribo, entre os organizadores e defensores da tribo e o Estado. (Não havia menção aqui de amizade entre mulheres, uma vez que as mulheres, naquela época, não podiam ser consideradas um fator social.)
No patriarcado se admiravam as virtudes do amor-amizade, que era considerado como um sentimento muito superior ao amor entre esposos. Castor e Pólux não passaram para a posterioridade por suas façanhas e serviços prestados à pátria. Foram os sentimentos de mútua fidelidade, amizade inseparável e indestrutível que fizeram seus nomes chegarem a nós. A “amizade” (ou o que aparenta ser um sentimento de amizade) era o que obrigava o marido apaixonado por sua esposa a ceder ao amigo preferido seu posto no leito conjugal. Outras vezes não era sequer o amigo, mas também o hóspede, a quem tinha que demonstrar a verdade de um sentimento de “amizade”, aquilo que supria o marido junto à mulher.
A amizade, sentimento que supõe “a fidelidade ao amigo até a morte”, foi considerada no mundo antigo com uma virtude cívica. Todo o contrário sucedia no amor e no sentido contemporâneo desta palavra, que não tinha nenhum papel na sociedade e nem sequer captava a atenção dos poetas ou dos dramaturgos da época. A ideologia daqueles tempos considerava o amor incluído nos quadros dos sentimentos exclusivamente pessoais, dos quais a sociedade não tinha porque se ocupar. O amor ocupava o lugar de outra distração qualquer: era um luxo que um cidadão podia se permitir depois de cumprir suas obrigações para com o Estado.
A qualidade de “saber amar”, tão valorizada pela ideologia burguesa quando o amor não vai além dos limites impostos pela moral de sua classe, carecia de sentido no mundo antigo quando se tratava de apontar as “virtudes” e qualidades características do homem. Na antiguidade, o único sentimento de amor que tinha valor era a amizade. O homem que realizava façanhas e arriscava sua vida pelo amigo alcançava fama, como os heróis lendários; sua ação se considerava como a expressão da “virtude moral”. Do contrário, o homem que arriscava sua vida pela da mulher amada incorria na reprovação de todos, reprovação que poderia inclusive chegar até em desprezo. Todos os escritos da antiguidade condenam os amores de Paris e a bela Helena, que foram a origem da Guerra de Tróia, guerra que somente “infortúnio” poderia acarretar aos homens.
O mundo antigo apreciava apenas a amizade como sentimento capaz de consolidar os laços espirituais necessários para a manutenção do organismo social entre os indivíduos de uma tribo, inescapavelmente frágeis naquela época. Por isso, posteriormente, a amizade deixou de ser considerada uma virtude moral.
Na sociedade burguesa, construída sobre a base do individualismo, concorrência desenfreada e simulação, já não há lugar para a amizade, considerada como fator social. A sociedade capitalista considerava a amizade como manifestação de “sentimentalismo”; portanto, como uma fraqueza de espírito completamente inútil e até nociva para a realização das tarefas de classe burguesas. A amizade na sociedade burguesa se transforma em motivo de trapaças. Se Castor e Pólux tivessem vivido em nossos tempos, sua amizade sem limites teriam provocado o sorriso indulgente da sociedade burguesa de Nova Iorque ou Londres. A sociedade feudal tampouco admitiu o sentimento de amizade como uma qualidade digna das que foram dignas de cultivar entre os homens.
O fundamento da sociedade feudal consistia no estrito cumprimento dos interesses das famílias nobres. A virtude não estava determinada pelas relações mútuas dos membros da sociedade, mas também pelo cumprimento dos deveres de um membro de uma família com respeito a ela e suas tradições. Predominavam no matrimônio os interesses familiares e, portanto, o homem jovem (a garota não tinha poder de escolha) que preferia uma mulher contra os interesses familiares sabia que tinha que fazer frente a censuras e desaprovações severas. Na Idade Média, não era conveniente para um homem antepor seus sentimentos pessoais aos interesses da família; era considerado um “pária” o que pretendesse romper as normas estabelecidas pela sociedade do seu tempo. Na ideologia da época feudal, o amor e o matrimônio não podiam andar juntos.
Porém, durante o feudalismo, o sentimento de amor entre seres de sexo contrário adquiriu certo direito pela primeira vez na História da Humanidade. A primeira vista, parece estranho o fato de que o amor fora reconhecido como tal naqueles tempos de ascetismo, de costumes brutais, naquela época de violências e do reinado do direito de usurpação. Mas se analisarmos detidamente as causas que tem obrigado ao reconhecimento do amor como um fator social, não somente ilegítimo, mas também desejável, veremos perfeitamente claros os motivos que determinaram o reconhecimento do amor. O homem apaixonado pode ser impelido pelo sentimento do amor (em determinados casos e com a ajuda de determinadas circunstâncias) a realizar feitos que não poderia executar em outra disposição mental.
A cavalaria errante exigia a todos os seus membros, no domínio militar, a prática de elevadas virtudes, mas de caráter exclusivamente pessoal. Estas virtudes eram a coragem, a bravura, a resistência etc. Naquela época, não era a organização do exército o determinante para a vitória no campo de batalha, mas as qualidades individuais dos combatentes. O cavaleiro apaixonado de sua dama inconquistável, “a escolhida de seu coração”, poderia ser o herói de verdadeiros “milagres de bravura”, poderia triunfar mais facilmente nos torneios e sabia sacrificar destemidamente sua vida em nome de sua amada. O cavaleiro apaixonado era movido pelo desejo de “diferenciar-se”, para conquistar assim os favores da escolhida de seu coração.
Este fato, por conseguinte, foi levado em conta pela ideologia cavaleiresca. Como reconhecia no amor o poder capaz de provocar no homem um estado psicológico útil para as finalidades da classe feudal, procurou, naturalmente, dar um lugar preferente ao amor nos sentimentos determinantes de sua ideologia. Naquele período, o amor entre os esposos não pode inspirar os cantos dos poetas, posto que o amor não era a base em que se fundamentava a família que vivia nos castelos. O amor como fator social só era valorizado quando se tratava dos sentimentos amorosos do cavalheiro pela esposa de outro, sentimentos que o levavam a realizar atos corajosos. Quanto mais inacessível estava a mulher escolhida, maior era o esforço realizado por seu cavaleiro para conquistar seus favores com as virtudes e qualidades apreciadas em seu mundo (coragem, resistência, tenacidade e bravura).
O natural era que a dama escolhida por um cavaleiro ocupasse uma posição o mais inacessível possível. A senhora de seus pensamentos, escolhida pelo cavaleiro, era correntemente a mulher do senhor feudal. Em algumas ocasiões, o cavaleiro era tão ousado que pousava os olhos sobre a rainha. Este ideal inacessível se baseava na concepção de que unicamente o “amor espiritual”, o amor sem satisfações carnais, que impulsionava o homem a tomar parte em feitos heróicos e lhe obrigava a realização de “milagres de bravura”, era digno de ser citado como modelo e merecer a qualificação de “virtude”.
As moças solteiras não eram nunca objeto da adoração dos valentes cavaleiros. Por mais elevada que fosse a posição, a adoração do cavaleiro podia terminar em matrimônio. Neste caso desaparecia inevitavelmente o fator psicológico que levava o homem a atos heróicos. Diante deste perigo, a moral feudal não poderia admitir o amor do cavaleiro pela moça solteira. O ideal de ascetismo (abstinência sexual) tem pontos de contato com a elevação do sentimento amoroso convertido em virtude moral.
O anseio de purificar o amor de tudo que fosse carnal, “culpável”; a aspiração de transformar o amor em um sentimento abstrato levava os cavaleiros da Idade Média a cair em monstruosas aberrações: escolhiam como “senhora de seus pensamentos” mulheres que nunca haviam visto, chegando inclusive a se apaixonar pela “Virgem Maria”. Não creio que seja possível desviar mais um sentimento. A ideologia feudal considerava, antes de tudo, o amor como um estimulante para fortalecer as qualidades necessárias a todo cavaleiro; o “amor espiritual”, a adoração do cavaleiro pela dama de seus pensamentos, serviam diretamente aos interesses da casta feudal. Esta apreciação foi a que fixou, desde os primórdios das época feudal, o conceito de amor. Antes da traição carnal da mulher, antes do “adultério” da esposa, o cavaleiro da Idade Média não hesitava, a enclausurava ou matava. Ao contrário, ele ficava lisonjeado se outro cavalheiro escolhesse sua esposa como a senhora de seus pensamentos e até mesmo permitia a ela uma corte de amor composta de "amigos espirituais".
Do contrário, a moral feudal cavaleiresca, que cantava e exaltava o amor espiritual, não exigia que as relações matrimoniais ou outras formas de união sexual tivessem por base o amor. O amor era uma coisa e o matrimônio outra. A ideologia feudal estabelecia entre estas duas noções uma clara distinção.
As noções de amor e matrimônio não se unificaram até os séculos 14 e 15, nos quais viu se iniciar a moral burguesa. Isto explica que, ao longo da Idade Média, os sentimentos amorosos elevados e delicados chocam-se com a grande brutalidade de costumes no domínio das relações sexuais. Como as relações sexuais, tanto no matrimônio mais legítimo como fora dele, estavam privadas do sentimento de amor capaz de transfigurá-las, ficavam reduzidas ao simples ato fisiológico.
A Igreja parecia excomungar a libertinagem; mas como promovia o “amor espiritual” de boca em boca, não fazia, na realidade, mais do que patrocinar relações brutais entre os sexos. O cavaleiro que levava sempre em seu coração o emblema da senhora de seus pensamentos, que compunha em sua honra versos cheios de delicadeza, que arriscava sua vida para merecer o sorriso de seus lábios, violava tranquilamente uma jovem da aldeia ou mandava seu escudeiro lhe levar ao castelo para distrair-se com as camponesas mais belas dos arredores.
As mulheres dos cavaleiros também não cessaram, imitando seus maridos, de gozar os prazeres carnais com trovadores e pajens. Em algumas ocasiões, estas esposas até admitiam as carícias dos criados, apesar de seu desprezo por eles.
À medida que a sociedade feudal perdia sua força, quando surgiam novas condições de vida que impunham os interesses da classe burguesa em formação, um novo ideal moral nas relações sexuais foi sendo criado aos poucos. A burguesia incipiente rejeitou o ideal do "amor espiritual" e tomou sob sua defesa os direitos do amor carnal, tão desprezados durante o feudalismo. A burguesia traz de volta ao amor a fusão do físico com o espiritual.
Entre o amor e o casamento, a moralidade burguesa não fazia diferença. Pelo contrário, o casamento tinha que ser determinado pela inclinação mútua entre os cônjuges. Embora a burguesia violasse com muita frequência este princípio moral, na prática, por razões de conveniência, é evidente que reconhecia o amor como fundamento do casamento. A burguesia tinha sólidas razões de classe para isso.
A família estava, no regime feudal, cimentada por tradições da nobreza. O matrimônio era de fato indissolúvel; sobre o casal unido em matrimônio pesavam os mandamentos da Igreja, a autoridade ilimitada dos chefes de família, o ascendente das tradições e da vontade do senhor feudal.
Sob outras condições, a família burguesa foi formada: não se baseava na posse de riqueza patrimonial, mas na acumulação de capital. A família se convertia em guardiã da riqueza acumulada. Mas para que esta acumulação se realizasse o mais rapidamente possível, era muito importante para a classe burguesa que os bens adquiridos pelo marido ou pai fossem gastos "economicamente", de forma inteligente, para não os desperdiçar. Era preciso, portanto, que a mulher fosse amiga e assistente do marido, além de "boa dona de casa".
Quando se estabeleceram as relações capitalistas, somente a família, na qual existia uma estreita colaboração entre todos os seus membros interessados na acumulação de riquezas, foi fundada em bases sólidas. Esta colaboração era muito mais perfeita e dava melhores resultados se os esposos e filhos estavam, no que diz respeito aos pais, unidos por verdadeiros laços espirituais e de carinho.
A nova estrutura econômica desta época contribuiu, a partir de fins do século 14 e início do 15, para o nascimento da nova ideologia. Gradualmente mudou-se o aspecto das relações de amor e matrimônio. Lutero, o reformador religioso, e com ele todos os pensadores e homens de ação do Renascimento e da Reforma (séculos 15 e 16), compreenderam claramente a força que o sentimento de amor implicava. Os ideólogos revolucionários da burguesia nascente se deram conta de que, para que a família pudesse ter uma base sólida (unidade econômica na base do regime burguês), era inevitável uma íntima união entre todos os seus membros e proclamaram a fusão do amor carnal e o amor psíquico, como um novo ideal moral de amor.
Estes reformadores se burlavam sem piedade do “amor espiritual” dos cavaleiros apaixonados, forçados a se consumir em seus desejos amorosos, sem esperança de satisfazê-los. Os ideólogos burgueses, os homens da Reforma, reconheceram a legitimidade das sãs exigências da carne. O mundo feudal dividia o amor e lhe obrigava tomar duas formas completamente independentes uma da outra: o simples ato sexual de um lado (relações sexuais do matrimônio ou do concubinato) e um sentimento de “elevado” amor platônico por outro ser (o amor que sentia o cavaleiro pela senhora de seus pensamentos).
O ideal moral da classe burguesa compreendia, na noção do amor, a atração carnal saudável entre os sexos e a afinidade psíquica. O ideal feudal estabelecia uma diferenciação clara entre o amor e o matrimônio. A burguesia fundia estes dois conceitos. Para a burguesia, o conceito do amor era equivalente ao do matrimônio.
Naturalmente, na prática, a burguesia violava seu próprio ideal. Enquanto na época feudal não tivesse havido sublevação contra a questão da inclinação mútua, a moral burguesa exigia, ainda que o matrimônio fosse por questões de conveniência, que os esposos aparentassem amar um ao outro, mesmo que somente em público.
Os preconceitos de amor e casamento da época feudal eram tão fortes que conservaram-se até nossos dias por sua adaptação ao meio ambiente durante os séculos de moralidade burguesa. Em nossos tempos, os membros das famílias coroadas e da alta aristocracia que os rodeiam ainda obedecem a essas tradições. Nestes meios da sociedade, o matrimônio de inclinação se qualifica de “ridículo” e sempre produz escândalo. Os jovens príncipes e princesas tem que se submeter à tirania das tradições de raça e as conveniências políticas de seu país e unir sua vida a uma pessoa que não conhecem nem amam. A história conserva um grande número de dramas como o do infeliz filho de Luís XV, que foi levado a realizar um casamento secreto apesar da profunda tristeza que sofria com a memória da morte de sua esposa, a quem havia amado apaixonadamente.
Existe igualmente entre os camponeses a subordinação do matrimônio à considerações de interesses. A família camponesa difere precisamente nisto da família burguesa da cidade. A família camponesa é, antes de tudo, uma unidade econômica de trabalho. Os interesses econômicos dominam de tal modo a família camponesa que todos os demais laços de ordem psíquica desempenham um papel secundário.
O amor nunca foi levado em consideração na família da Idade Média quando o casamento era arranjado. Na época das guildas de artesãos, a família era também uma unidade de produção que descansava sobre o princípio econômico do trabalho. O ideal do amor em um casamento não começa a aparecer até que a família deixa de ser uma unidade de produção para se converter em uma unidade de consumo e em guardiã do capital acumulado.
Mas apesar da moral da burguesia proclamar o direito de “dois corações amantes” unirem-se mesmo contra as tradições familiares, apesar de se burlar do “amor platônico” e do ascetismo e de afirmar que o amor era a base do matrimônio, era muito cuidadosa em por estreitas rédeas a todas as suas concessões. O amor não poderia ser considerado como um sentimento mais legítimo que o matrimônio: fora dele, o amor era considerado imoral. Este ideal respondido à consideração é de natureza econômica: evitar que o capital acumulado se espalhe com os filhos nascidos da união conjugal. Toda a moral da burguesia tinha por função contribuir com a acumulação do capital. O ideal de amor ficava, portanto, constituído no casal unido em matrimônio, cujo fim era aumentar seu bem estar material e as riquezas no núcleo familiar completamente isolado do resto da sociedade. Quando os interesses da família e da sociedade se confrontavam, a moral burguesa sempre se inclinava a favor dos interesses da família. (Por exemplo, a condescendência, não admitida por lei, mas que a moral burguesa concedia aos desertores; a justificativa moral de um administrador dos interesses de vários acionistas que lhe haviam confiado seus fundos, que ele arruinou para aumentar o patrimônio família etc.)
A burguesia, com o espírito utilitarista que a caracterizava, pretendia tirar proveito do o amor e converter, portanto, esse sentimento em um meio de consolidar os laços de família.
Mas o amor estava aprisionado com fortes correntes pelos limites impostos pela ideologia burguesa. Assim, os "conflitos de amor" nasceram e se multiplicaram. O romance, um novo gênero literário criado pela classe burguesa, serviu para expressar os conflitos amorosos causados pela corrente do amor. O amor ultrapassava constantemente os limites matrimoniais que lhe eram impostos e assumia a forma de união livre ou adultério, condenadas pela moral da burguesia, que na realidade nada mais fazia do que cultivar.
Este ideal burguês de amor, que não satisfaz os desejos da classe trabalhadora, não corresponde as necessidades da maior camada social. Tampouco satisfaz as aspirações de vida dos trabalhadores intelectuais. A isto se deve o enorme interesse que despertam todos os problemas de sexo e amor surgidos nos países de capitalismo desenvolvido. É aqui que se originam pesquisas apaixonadas para encontrar uma solução para este problema angustiante que assola a humanidade há vários séculos. Como será possível estabelecer relações entre os sexos que ajudem a tornar os homens mais felizes, mas ao mesmo tempo não destruam os interesses da comunidade?
A juventude trabalhadora da Rússia passa pelo mesmo problema. Uma breve análise da evolução das relações conjugais e dos sentimentos de amor nos ajudará, jovem camarada, a compreender uma verdade indiscutível: que o amor não é um assunto privado, como parece à primeira vista. O amor é um precioso fator social e psíquico que a Humanidade maneja instintivamente de acordo com os interesses da comunidade. A humanidade trabalhadora, munida do método científico do marxismo e da experiência do passado, deve compreender o lugar que a nova Humanidade deve reservar ao amor nas relações sociais. Qual é, então, o ideal de amor que corresponde aos interesses da classe que luta para estender seu domínio por todo o mundo?
Não devemos confundir esta dualidade com as relações sexuais de um homem com várias mulheres, ou de uma mulher com vários homens, quando falamos da dualidade do sentimento de amor, das complexidades do “Eros de asas abertas”. A poligamia, na qual o sentimento de amor não ocorre, pode ser causa de consequências nefastas (esgotamento prematuro, maior facilidade para contrair doenças venéras etc.); mas estas uniões não criam “dramas morais”. Os conflitos, os “dramas” surgem quando nos encontramos na presença do amor com todas as suas manifestações e nuances.
Pode uma mulher amar um homem “pelo seu espírito” somente se seus pensamentos, seus desejos e suas aspirações se harmonizarem com os seus e, ao mesmo tempo, pode sentir-se arrastada pela poderosa atração física por outro homem. O mesmo que a mulher pode o homem experimentar um sentimento de ternura cheio de considerações, compaixão cheia de desejo por uma mulher, ainda que encontre em outra seu apoio e compreensão das mais altas e melhores aspirações de seu “eu”. A qual destas duas mulheres deverá entregar a plenitude de “Eros”? Terá necessariamente que mutilar sua alma e arrancar um destes dois sentimentos quando apenas pode adquirir a plenitude de seu ser com o mantimento destes dois laços de amor?
O desdobramento da alma e do sentimento traz consigo inevitáveis sofrimentos sob o regime burguês. A ideologia baseada no instinto da propriedade incutiu no homem por séculos e séculos que todos os sentimentos de amor devem ser baseados em um princípio de propriedade. A ideologia burguesa tem gravado na cabeça dos homens a ideia de que o amor dá direito a possuir plenamente, e sem compartilhar com ninguém, o coração do ser amado. Este ideal, esta exclusividade no sentimento de amor, era a consequência natural da fórmula estabelecida do casamento indissolúvel do ideal burguês de “amor absorvente” entre os esposos. Mas pode um ideal desta classe responder aos interesses da classe trabalhadora? Do ponto de vista da ideologia proletária, é muito mais importante e desejável que as sensações dos homens se enriqueçam cada vez com maior conteúdo e sejam mais diversas. A multiplicidade da alma constitui um feito precisamente facilitador da educação e do desenvolvimento dos laços do espírito e do coração, mediante os quais se consolidará a coletividade trabalhadora. Quanto mais numerosos os fios que se estendem entre as almas, entre as mentes e os corações, mais solidez adquire o espírito de solidariedade e mais facilmente se realiza o ideal da classe operária: o amor-camaradagem.
A Humanidade do patriarcado apresentou o amor como o afeto entre os membros de uma família (amor entre irmãos e irmãs, entre filhos e pais). O mundo antigo colocava o amor-amizade antes de qualquer outro sentimento. O mundo feudal fazia do amor “espiritual” do cavaleiro seu ideal, amor independente do matrimônio e que não levava consigo a satisfação da carne. O ideal de amor da sociedade burguesa era o amor de um par unido com um sentimento legítimo.
O ideal de amor da classe operária está fundamentado na solidariedade de espírito e da vontade de todos os membros, homens e mulheres, na colaboração e no trabalho, e portanto, se distingue de um modo absoluto da noção de amor que tinham as outras civilizações. Que é, pois, o “amor-camaradagem”? Tudo isto quer dizer que a ideologia severa da classe trabalhadora, forjada em um clima de luta pelo triunfo da ditadura do proletariado, se prepara para expulsar sem piedade o delicado Eros alado? De modo algum. A ideologia da classe operária não pode desprezar o “Eros de asas despregadas”. A ideologia da classe trabalhadora não pode deslocar o "Eros de asas abertas". Muito pelo contrário; ou seja, como força social e psíquica, prepara o reconhecimento do sentimento de amor.
A moral hipócrita da cultura burguesa, que obrigava ao deus Eros não visitar mais que o “casal unido legalmente”, arrancava-lhe sem piedade as plumas mais belas de suas asas de cores brilhantes. Para a ideologia burguesa, fora do matrimônio não poderia existir mais que o Eros sem asas, o Eros despojado de suas plumas de cores vibrantes; a atração passageira entre os sexos na forma de carícias roubadas (adultério) ou compradas (prostituição). Ao contrário, a moral da classe trabalhadora rejeita francamente a forma externa que estabelece as relações de amor entre os sexos.
Para a realização das tarefas do proletariado, é exatamente o mesmo que o amor tenha a forma de uma união estável ou que não tenha mais importância do que a de uma união temporária. A ideologia da classe operária não pode fixar limites formais ao amor. Esta ideologia, pelo contrário, começa a sentir inquietude pelo conteúdo do amor, pelos laços de emoções e sentimentos que unem os dois sexos. Neste sentido, a ideologia proletária tem que perseguir ao “Eros sem asas” (injúria, satisfação única dos desejos carnais por si mesmos, o que faz dele um “prazer sexual” com um fim em si mesmo, um prazer fácil etc.) mais inplacadamente que o fazia a moral burguesa. O “Eros sem asas” se contradiz com os interesses da classe trabalhadora. Este amor supõe, em primeiro lugar, inevitavelmente os excessos e o esgotamento físico, o que contribui para a diminuição da reserva de energia da Humanidade. Em segundo lugar, o “Eros sem asas” empobrece a alma, porque impede o desenvolvimento de sensações de simpatia e de laços psíquicos entre os seres humanos. Em terceiro lugar, este amor tem por base a desigualdade de direitos entre os sexos e as relações sexuais; isto é, está fundado na dependência da mulher em relação ao homem, na insenbilidade ou fatuidade do homem; tudo isso necessariamente sufoca qualquer possibilidade de experimentar um sentimento de camaradagem. Por outro lado, a ação exercida sobre os seres humanos pelo "Eros de asas abertas" é completamente diferente.
Como no "Eros sem asas", é claro que os sentimentos não se manifestam apenas nas relações com o objeto de amor físico entre os sexos. A diferença consiste precisamente no fato de que no ser movido por sentimentos de amor que o empurram para outro ser, principalmente aquelas qualidades da alma necessárias aos construtores da nova cultura, se manifestam e despertam: delicadeza, sensibilidade e desejo de ser útil ao outro. Por outro lado, a ideologia burguesa exige que o homem ou a mulher exibam essas qualidades apenas na presença do escolhido; isto é, em seus relacionamentos com um homem solteiro ou com uma mulher solteira. Para a ideologia proletária, o mais importante é que essas qualidades sejam despertadas, educadas e desenvolvidas em todos os homens e, portanto, que se manifestem não apenas nas relações com o objeto amado, mas nas relações com todos os membros da comunidade.
Na verdade, as nuances e sentimentos predominantes no "Eros com asas abertas" não são importantes para o proletariado; o proletariado sente-se indiferente aos tons delicados do complexo do amor, às cores ígneas da paixão ou à harmonia do espírito. O que só lhe interessa é que em todos os sentimentos e manifestações de amor existam elementos psíquicos que desenvolvem o sentimento de camaradagem.
O ideal de camaradagem forjado pela ideologia proletária para substituir o amor conjugal "exclusivo" e "absorvente" da moral burguesa baseia-se no reconhecimento dos direitos recíprocos, na arte de saber respeitar, mesmo no amor, a personalidade de outro, no firme apoio mútuo e na comunidade de aspirações coletivas.
O amor-camaradagem é o ideal necessário para o proletariado em períodos difíceis de grandes responsabilidades, nos quais luta pelo estabelecimento de sua ditadura ou pelo fortalecimento de sua manutenção. Desta forma, quando o proletariado tiver triunfado plenamente e a sociedade comunista já for um fato, o amor, o "Eros alado", assumirá um aspecto completamente diferente do que tem atualmente, irá apresentar-se de uma forma totalmente diferente, adquirirá um aspecto completamente desconhecido até agora pelos homens. Entre os membros da nova sociedade, "laços de simpatia" terão se desenvolvido e fortalecido, "a capacidade de amar" será muito maior e o amor-camaradagem se tornará um "animador", função que originalmente estava reservada na sociedade burguesa à competição e ao egoísmo. O coletivismo de espírito e vontade triunfará sobre o individualismo autossuficiente. Desaparecerá o "frio da solidão moral", do qual, no regime burguês, os homens tentavam fugir refugiando-se no amor ou no casamento; os homens estarão unidos uns aos outros por inúmeros laços psíquicos e sentimentais. Os sentimentos dos homens serão modificados no sentido de interesses cada vez maiores para com os assuntos públicos. A desigualdade entre os sexos e todas as formas de dependência das mulheres em relação aos homens vão desaparecer no esquecimento sem deixar o menor vestígio.
Eros, o deus do amor, ocupará uma posição de honra como sentimento capaz de enriquecer a felicidade humana nesta nova sociedade, coletivista em espírito e emoções, caracterizada pela união feliz e relações fraternas entre membros da comunidade trabalhadora e criadora. Como esse Eros será transfigurado? Nem mesmo a fantasia mais criativa pode imaginar isso. A única coisa indiscutível é que quanto mais a humanidade estiver unida por laços duradouros de solidariedade, mais intimamente ela estará em todos os aspectos da vida, relações mútuas ou criação. Consequentemente, menos espaço será deixado para o amor no sentido contemporâneo da palavra.
O amor peca sempre, nos nossos tempos, pelo excesso de absorção de todos os sentimentos, de todos os pensamentos entre dois "corações que se amam", e que, pelo mesmo motivo, isolam e separam o casal amoroso do resto da coletividade. Esse isolamento moral, esse afastamento do "parceiro amoroso" não apenas será completamente inútil, mas psicologicamente impossível em uma sociedade na qual os interesses, aspirações e tarefas de todos os membros da comunidade estão intimamente unidos. Neste novo mundo, a forma normal, reconhecida e desejável de relações entre os sexos será baseada puramente na atração saudável, livre e natural "sem perversões ou excessos" dos sexos; as relações sexuais dos homens na nova sociedade serão determinadas pelo "Eros transfigurado".
Mas hoje nos encontramos na esquina onde duas civilizações se cruzam: a civilização proletária e a civilização burguesa. Neste período de transição, em que estes dois mundos lutam ferozmente em todas as frentes, mesmo na ideológica, o proletário está muito interessado em conseguir por todos os meios à sua disposição o acúmulo mais rápido possível de "sensações ou sentimentos de simpatia". Neste período de transição, a ideia moral que determina as relações entre os sexos não pode ser o instinto sexual brutal, mas as múltiplas sensações de amor-camaradagem experimentadas por homens e mulheres. É necessário, para que essas sensações correspondam à nova moral proletária em formação, que se baseiem nos três postulados seguintes:
Igualdade nas relações mútuas (isto é, o desaparecimento da suficiência masculina e a submissão servil da individualidade da mulher ao amor).
Reconhecimento mútuo e recíproco dos seus direitos, sem reclamar a nenhum dos entes unidos por relações de amor a posse absoluta do coração e da alma do ente querido. (Desaparecimento do senso de propriedade fomentado pela civilização burguesa).
Sensibilidade fraterna: a arte de assimilar e compreender o trabalho psíquico que se realiza na alma do ente querido. (A civilização burguesa só exigia que as mulheres possuíssem essa sensibilidade no amor.)
Mas embora a ideologia da classe trabalhadora proclame os direitos do "Eros de asas estendidas" (do amor), subordina ao mesmo tempo o amor que os membros da comunidade trabalhadora sentem uns pelos outros a outro sentimento muito mais poderoso, um sentimento de dever para com a comunidade. Por maior que seja o amor que une duas pessoas de sexos diferentes, por quantos laços que unem seus corações e almas, os laços que os unem à comunidade devem ser muito mais fortes, mais orgânicos e mais numerosos. "Tudo pelo homem amado", proclama a moral burguesa. "Tudo pela comunidade" determina a moralidade proletária.
Agora ouço você argumentar, meu jovem camarada: concedido, como você afirma, que as relações de amor baseadas no espírito de fraternidade se tornam o ideal da classe trabalhadora. Mas esse ideal, essa "medida moral" do amor, não pesará muito sobre os sentimentos de amor? Não poderia acontecer que este ideal destrua e mutile as asas delicadas do "Suspeito-Eros"? Libertamos o amor das correntes da moralidade burguesa; mas será que não criaremos outras?
Meu jovem camarada, você está certo. Ao rejeitar a "moralidade" burguesa no domínio das relações matrimoniais, a ideologia proletária forja inevitavelmente sua própria moralidade de classe, suas novas e reguladoras normas de relações entre os sexos, que correspondem melhor às tarefas da classe trabalhadora, que servem para educar os sentimentos de seus membros e que, portanto, constituem em certa medida correntes que aprisionam o sentimento de amor. Não há dúvida de que o proletariado arrancará irrevogavelmente muitas penas das asas do delicado Eros, se falarmos do amor patrocinado pela ideologia burguesa, como essa ideologia o representa. Mas o que não se pode fazer, porque significa não perceber o futuro, é lamentar que a classe trabalhadora imprima as relações sexuais para fazer corresponder o sentimento de amor às suas tarefas de classe. É evidente que em vez das velhas penas arrancadas das asas de Eros, a classe ascendente da Humanidade fará crescer outras de beleza, brilho e força até então desconhecidos. Não te esqueças, jovem camarada, que o amor muda de aparência e se transforma inevitavelmente à medida que mudam os fundamentos culturais e econômicos da sociedade.
Se conseguirmos que desapareça das relações amorosas o sentimento cego, absorvente e exigente da paixão; se também desaparece o sentimento de propriedade, assim como o desejo egoísta de "unir-se ao ente querido para sempre"; se conseguirmos fazer desaparecer a fatalidade do homem e que a mulher não renuncie criminosamente ao seu "eu", não há dúvida de que o desaparecimento de todos esses sentimentos fará com que outros elementos preciosos para o amor se desenvolvam. Desta forma, o respeito pela personalidade do outro irá se desenvolver e aumentar, assim como a arte de contar com os direitos dos outros será aperfeiçoada; se educará a sensibilidade recíproca e se desenvolverá grandemente a tendência para expressar o amor não só com beijos e abraços, mas também com uma unidade de ação e vontade na criação comum.
Não é, portanto, tarefa da ideologia proletária separar o "Eros alado" de suas relações sociais. Consiste simplesmente em encher sua aljava com novas flechas; no desenvolvimento do sentimento de amor entre os sexos a partir da nova força psíquica mais poderosa: a solidariedade fraterna.
Jovem camarada, espero que agora você veja claramente que o fato de o problema do amor despertar um interesse tão extraordinário entre os jovens trabalhadores não é um sinal de "declínio" de forma alguma. Creio que agora poderá encontrar para si o lugar que o amor deve corresponder tanto na ideologia do proletariado como na vida quotidiana da juventude trabalhadora.
III - O AMOR-CAMARADAGEM
A nova sociedade comunista é construída com base no princípio de camaradagem e solidariedade. Mas o que é solidariedade? Devemos não apenas compreender por solidariedade a consciência da comunidade de interesses; A solidariedade também é constituída pelos laços sentimentais e espirituais estabelecidos entre os membros de uma mesma comunidade de trabalho. O sistema social construído sobre princípios de solidariedade e colaboração exige, no entanto, que a sociedade em questão possua, desenvolvida em alto grau, “a capacidade de amar potencial”, isto é, a capacidade de sentir simpatia.
Se essas sensações faltam, o sentimento de camaradagem não pode ser consolidado. Por isso, a ideologia proletária procura educar e reforçar em cada um dos membros da classe operária sentimentos de simpatia pelos sofrimentos e necessidades de seus camaradas de classe. A ideologia proletária também tende a compreender as aspirações dos outros e a desenvolver uma consciência de sua união com os outros membros da comunidade. Mas todos esses "sentimentos de simpatia", delicadeza, sensibilidade e afeição derivam de uma fonte comum: a capacidade de amar, não de amar no sentido puramente sexual, mas com um amor no sentido mais amplo da palavra.
O amor é um sentimento que une os indivíduos; podemos até dizer que é um sentimento de ordem orgânica. A burguesia também compreendeu todo o poder de união entre os homens que o amor pode ter e, por isso, procurou sujeitá-lo bem aos seus interesses. É por isso que a ideologia burguesa, ao tentar consolidar a família, recorre à virtude moral do "amor entre os esposos"; ser "um homem de família" era, aos olhos da burguesia, uma das maiores e mais preciosas qualidades do homem.
Por sua vez, o proletariado deve considerar o papel social e psicológico do sentimento de amor, tanto no sentido literal da palavra como no que diz respeito às relações entre os sexos, que pode e deve desempenhar para estreitar os laços, não no domínio das relações conjugais e familiares, mas sim aquelas que contribuem para o desenvolvimento da solidariedade coletiva.
Qual será, então, o ideal de amor para a classe trabalhadora? Em que sentimentos as relações sexuais devem ser baseadas na ideologia proletária?
Já vimos, meu jovem camarada, como cada época da história tem seu próprio ideal de amor peculiar; analisamos como cada classe, em seu próprio interesse, dá à noção moral do amor um certo conteúdo. Cada grau de civilização traz à Humanidade sensações intelectuais e morais mais ricas em nuances, que cobrem as delicadas asas de Eros de uma certa cor. A evolução do desenvolvimento da economia e dos costumes sociais foi acompanhada por novas modificações no conceito de amor. Algumas nuances deste sentimento foram reforçadas, enquanto outras diminuíram ou desapareceram totalmente.
O amor, ao longo dos séculos de existência da sociedade humana, evoluiu de um simples instinto biológico (o instinto de reprodução, comum a todos os seres vivos superiores ou inferiores, dividido em dois sexos) e foi constantemente enriquecido com novas sensações psíquicas até que se torne um sentimento muito complicado.
O amor deixou de ser um fenômeno biológico para se tornar um fator social e psicológico.
O instinto biológico de reprodução, que nos estágios iniciais do desenvolvimento humano determinava as relações entre os sexos, assumia dois significados diametralmente opostos sob a pressão das forças econômicas e sociais: de um lado, sob a pressão das relações econômicas e sociais monstruosas, especialmente sob o jugo capitalista, o instinto sexual saudável (a atração de dois seres de sexos diferentes baseada no instinto reprodutivo) degenerou e se tornou uma luxúria doentia. O ato sexual tornou-se um fim em si mesmo, um meio para alcançar "maior volúpia", uma depravação exacerbada pelos excessos, perversões e picadas doentias da carne. O homem procurava a mulher, não movido por uma corrente sexual saudável que o empurrasse com todo o seu ímpeto para uma mulher; o homem "procurava" a mulher sem sentir nenhuma necessidade sexual, e ele a procurava com o único propósito de satisfazer esta necessidade por meio do contato íntimo com a mulher. Desta forma o homem busca uma volúpia com o próprio fato do ato sexual. Se a intimidade de lidar com as mulheres não provoca nos homens a esperada excitação, os homens devastados pelos excessos sexuais recorrem a todo tipo de aberrações.
Este é um desvio do instinto biológico em uma luxúria doentia que faz com que ele se afaste de sua fonte original.
A atração física entre os sexos se complica, por outro lado, ao longo dos séculos de vida social da Humanidade e das diversas civilizações, e adquire toda uma gama de diferentes nuances e sentimentos. O amor é um estado psicológico muito complexo, em sua forma atual, que durante muito tempo foi completamente desvinculado de sua fonte original, o instinto biológico de reprodução, e que em muitos casos se contradiz com ele. O amor é um conglomerado de diversos sentimentos: ternura espiritual, paixão, inclinação, pena, costumes etc. É portanto difícil, dada a grande complexidade, estabelecer uma ligação direta entre o "Eros sem asas" (atração física entre os sexos) e o "Eros com asas abertas" (atração psíquica).
Amor-amizade, em que não é possível encontrar um átomo de atração física; amor espiritual, sentido pela causa, pela ideia; o impessoal em relação à comunidade, são sentimentos que demonstram claramente até que ponto o sentido do amor foi idealizado e afastado de sua base biológica. Mas até o problema é muito mais complicado. Com grande frequência surge uma contradição flagrante entre as várias manifestações de amor e a luta começa. O amor sentido pela "causa amada" (não o amor sentido simplesmente pela causa, mas pela causa amada) não condiz com o amor sentido pelo eleito do coração, amor pela esposa, pelo marido ou pelos filhos. O amor-amizade está em contradição com o amor-paixão. Em um caso, o amor é dominado pela harmonia psíquica; no outro, baseia-se na "harmonia do corpo".
O amor foi revestido de muitos aspectos. Do ponto de vista das emoções do amor, o homem do nosso tempo, em que séculos de evolução cultural fizeram se educar e desenvolver as diferentes nuances deste sentimento, sente-se incômodo no sentido que é demasiado vago e significado geral da palavra amor.
A multiplicidade do sentimento de amor, sob o jugo da ideologia e dos costumes capitalistas, cria uma série de dramas morais dolorosos e insolúveis. Desde o final do século 19, psicólogos e escritores passaram a tratar como tema favorito a multiplicidade do sentimento de amor. Os representantes reflexivos da cultura burguesa começaram a ficar perplexos e desconfortáveis com esse "enigma" do "amor por dois ou até três seres". H. A. Herzen, nosso grande pensador e escritor do século passado, tentou encontrar uma solução para essa complexidade da alma humana, para esse desdobramento de sentimentos, em seu romance intitulado “De quem é a culpa?”. Chernichevski também tentou encontrar a solução para esse problema no romance social “O que fazer?”. O desdobramento do sentimento de amor, sua multiplicidade, preocupou os maiores escritores da Escandinávia, como Hansen, Ibsen, Bernsen e Heiderstam.
Os escritores franceses do século passado também trataram desse assunto. Romain Rolland, escritor simpatizante do comunismo, e Maeterlinck, que não poderia estar mais longe de nossos ideais, também tentaram encontrar a solução para este problema. Gênios poéticos como Goethe, Byron e George Sand, este último um dos mais ardentes pioneiros no domínio das relações entre os sexos, tentaram resolver na prática este complicado problema, esse "enigma do amor". Herzen, o autor do livro mencionado, assim como outros pensadores, poetas e estadistas, perceberam à luz de sua própria experiência o terrível problema. Mas sob o peso do “enigma da dualidade dos sentimentos de amor”, também homens que não são “grandes” de modo algum, mas que em vão procuram a chave para a solução do problema dentro dos limites impostos pelo pensamento burguês. A solução do problema está precisamente nas mãos do proletariado. A solução deste problema pertence à ideologia e ao novo modo de vida da humanidade trabalhadora.
Fonte: marxists.org
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