I
Eu vejo claramente duas tendências em sua [1] carta a um amigo: uma delas enfatiza, legitimamente, a necessidade da luta econômica, a necessidade de sermos capazes de usar também as associações operárias legais “para responder de maneiras diversas às necessidades vitais do dia a dia dos operários” e assim por diante. Tudo isso é legítimo e correto. Você se equivoca se pensa que os revolucionários “se opõem às associações legais”, que tais associações são “odiadas” por eles, que eles “viram as costas para a associação”, e assim por diante. Os revolucionários também reconhecem a necessidade da luta econômica, de responder também às necessidades vitais do dia a adia e de também aprender a usar as associações legais. Não só os revolucionários nunca, em lugar nenhum, aconselharam a virar as costas para a associação, mas, ao contrário, sublinharam que ela é essencial para a social-democracia tomar a liderança do movimento social e unir sob a liderança do Partido Social-Democrata revolucionário todos os elementos democratas. No entanto, é preciso cuidar para que as associações legais e as organizações puramente econômicas não separem o movimento operário da social-democracia e da luta política revolucionária, mas elas devem, ao contrário, ligá-los o mais estreita e indissoluvelmente possível. Mas em sua carta, também há aquela tendência (nociva e, em minha opinião, totalmente reacionária), a tendência de separar o movimento operário da social-democracia e da luta política revolucionária – de protelar as tarefas políticas, de substituir o conceito de “Luta política” pelo conceito de “Luta por direitos legais” e assim por diante. Como traça a linha que diferencia a tendência saudável e útil da nociva? Eu acredito que não haja necessidade de persuadir você, que já experimentou as “reuniões no exterior”, de que não podemos nos restringir a simples conversa. E não seria ridículo temer a análise da questão na imprensa, já que já foi discutida por muito tempo em cartas e debates? Por que os debates nas reuniões e cartas são considerados permitidos e a elucidação das questões polêmicas na imprensa é considerada “a coisa mais nociva, capaz apenas (???) de divertir nossos inimigos?” É isso que eu não consigo entender. Só as polêmicas na imprensa podem estabelecer precisamente a linha divisória a que me refiro, porque algumas pessoas frequentemente se mantêm inclinadas a ir aos extremos. É claro que a luta na imprensa vai causar mais mal-estar e nos dar algumas boas porradas, mas não somos tão frágeis assim para ter medo de levar porrada! Desejar uma luta sem porradas, diferenças sem luta, seria o cúmulo da ingenuidade, e se a luta for travada abertamente, será cem vezes melhor que o “gubarevismo” estrangeiro e russo, e levará, eu repito, cem vezes mais rápido a unidade duradoura.
II
26 de outubro. Recebi sua carta de 24 de outubro ontem e estou respondendo imediatamente como solicitado. Não posso encaminhar sua carta exatamente agora, porque não estou enviando nada em anexo para o endereço que tenho, e só estou usando método químico. Não tenho tempo de copiar a carta dessa forma. Eu escrevi para o destinatário [2] ontem falando do conteúdo geral da carta, e espero no futuro próxima passar a ele toda a carta. Mas se você puder copiá-la em um livro solto pelo método químico, vou enviar imediatamente. Darei o endereço à minha irmã: ela não estava em Paris em setembro, então dificilmente vocês poderiam ter estado lá ao mesmo tempo. Espero que você tenha deixado algumas linhas no endereço que lhe dei.
Agora, ao que interessa. A carta que você me enviou deixou uma impressão estranha. Além da informação sobre endereços e encaminhamentos, ela só contem reprovações – simples reprovações sem nenhuma explicação. Você chegou ao ponto de tentar fazer comentários ácidos (“tem certeza de que você fez isso para o benefício do movimento operário russo e não para o benefício de Plekhánov?”) – mas, claro, não vou trocar comentários ácidos com você. Você me censura por ter “aconselhado contra” [3]. Você me cita sem precisão. Eu lembro bem que não me expressei categoricamente, em absoluto. Escrevi: “É difícil par anos nesse momento aconselharmos qualquer coisa”, ou seja, eu fiz nossa decisão depender diretamente de uma elucidação preliminar do assunto. O que deveria ser essa elucidação fica claro na minha carta: é essencial para nós termo total certeza de se houve mesmo um “giro” no Rabótchaia Misl [4] (como nos falaram e como podemos concluir do fato de que você propôs a Plekhánov que deveria participar) e que tipo de giro. Sobre essa questão básica e principal, você não diz uma palavra sequer. Que consideramos o Rabótchaia Misl como um órgão de uma tendência especifica com a qual divergimos de maneira muito séria é algo que você tem ciência há muito tempo. Alguns meses atrás tanto o destinatário de sua longa carta quanto eu nos recusamos a participar de um órgão dessa tendência e, obviamente, ao fazermos nós mesmos, não poderíamos aconselhar outros a fazer outra coisa. A notícia de um “giro” no Rabótchaia Misl, no entanto, nos coloca em uma “dificuldade”. Um giro real poderia substancialmente alterar a situação. É natural, portanto, que em minha carta eu tenha expressado acima de tudo o desejo de compreender todos os detalhes desse giro – mas você não disse uma palavra sequer em resposta a isso. Talvez, contudo, você considere que a resposta a minha questão sobre o giro esteja contida na carta ao meu amigo [5]? Talvez, se você abordasse Plekhánov em nome do conselho editorial do Rabótchaia Misl, sua carta ao meu amigo poderia ser tomada como uma expressão legítima da visão do conselho? Se for isso, então estou inclinado a concluir que não houve giro. Se eu estiver errado, por favor me explique meu erro. Outro dia mesmo, um outro apoiador de Plekhánov me escreveu sobre o giro no Rabótchaia Misl. Mas, por estar me correspondendo com você, eu não podia, claro, acreditar nesses “boatos” de um giro que não foi confirmado por você de maneira alguma. Novamente, seria melhor eu dizer aberta e diretamente (mesmo sob o risco de receber ainda mais reprovações) que, estando em completa solidariedade a meu amigo (a quem você escreveu), eu subscrevo as palavras dele: “Temos de lutar contra você” – se não houver giro. Mas se houver – então você precisa me explica com todos os detalhes exatamente que giro é esse. Você escreveu ao meu amigo: “lute contra nós, se não tiver vergonha de fazê-lo”. Ele mesmo vai lhe responder, claro, mas, de minha parte, pedirei licença para também responder. Não tenho a menor vergonha de lutar – ainda mais vendo que as coisas chegaram ao ponto de que as divergências atingiram questões fundamentais, que se criou uma atmosfera de mútua incompreensão, mútua desconfianças e completa divergência de visões (e não falo só do Rabótchaia Misl; mas de tudo que tenho visto e ouvido e não tanto aqui como em casa), haja vista a quantidade de “cisões” que já apareceram sobre esse tema. Nós nos livrarmos dessa atmosfera opressiva, praticamente uma tempestade furiosa, e não apenas de uma polêmica literária, pode (e deve) ser algo bem-vindo. E não há razão para ter tanto medo de uma luta: uma luta pode causar aborrecimento para alguns indivíduos, mas vai clarear o céu, definir atitudes de uma forma precisa e direta, definir quais diferenças são importantes e quais são desimportantes, definir onde as pessoas estão – aqueles que estão indo por um caminho completamente diferente e aqueles camaradas do Partido que só divergem em questões menores. Você escreve que houve erros no Rabótchaia Misl. Claro, todos cometemos erros. Sem uma luta, contudo, como alguém pode distinguir esses erros menores da tendência que se mostra com clareza no Rabótchaia Misl e que atingiu seu ápice no “Credo” [6]. Sem luta não pode haver uma escolha, e sem uma escolha não pode haver avanço exitoso, nem pode haver unidade duradoura. E aqueles que começam a luta agora não estão de forma alguma destruindo a unidade. Não há mais qualquer unidade, ela já foi destruída até o fim. O marxismo russo e a social-democracia russa já são uma casa dividida contra si mesma, e uma luta aberta e franca é uma das condições essências de restaurar a unidade. Sim, restaurar! O tipo de “unidade” que nos faz esconder documentos “economicistas” [7] de nossos camaradas como uma doença secreta, que nos faz ressentir a publicação de declarações revelando quais visões estão sendo propagadas como visões social-democratas – essa “unidade” não vale um centavo, essa “unidade” é pura hipocrisia, ela só agrava a doença e lhe dá uma forma crônica e maligna. Que uma luta aberta, franca e honesta vai curar essa doença e criar um movimento social-democrata realmente unido, vigoroso e forte – disso eu não tenho dúvidas. Talvez seja inadequado que em uma carta para você, dentre todas as pessoas, eu tenha que falar tanto de uma luta (uma luta literária). Mas penso que nossa velha amizade mais do que tudo faz com que uma franqueza total seja obrigatória.
Um aperto de mãos,
Petroff.
P.S. Dentro de uma ou duas semanas eu terei um novo endereço: Senhor Philipp Roegner, Charutaria, Viela Nova, Nurembergue ) apenas para cartas e com dois envelopes). [Por favor não escreva inicias nas cartas – só Deus sabe se o correio aqui é confiável.]
Fonte: traduagindo.com
Disponível no livro “O Centralismo Democrático de Lênin”, organizado por Gabriel Landi e Gabriel Lazzari, publicado pela Editora Lavrapalavra, compre o livro aqui. (insira o link do livro em " compre o livro aqui:
Notas de Rodapé: [1] Apollinaria Alexandrovna Iakúbova (1870 – 1917) foi uma participante no movimento social-democrata desde 1893, grande expoente do economicismo. Foi membra da Liga de Luta pela Emancipação da Classe Operária de São Petersburgo; em 1897-98 foi uma das organizadoras da publicação petersburguesa do jornal economicista Rabótchaia Misl. Em 1898 foi exilada para a Sibéria para cumprir uma pena de quatro anos e emigrou no verão de 1899. Auxiliou na organização do II Congreso do POSDR, no qual participou como delegada sem direito a voto. Depois da cisão do Partido, ela tomou o lado dos mencheviques. Afastou-se das atividades políticas depois de 1905. [2] N.E. A referência é a Plekhánov. [3] N.E. A referência é à resposta de Lênin a Plekhánov, que pediu conselhos de Lênin sobre o convite dos economistas para contribuir com seu jornal, o Rabótchaia Misl. [4] N.E. Rabótchaia Misl (O Pensamento dos Operários) foi um jornal, órgão dos economistas, publicado de outubro de 1897 a dezembro de 1902. Dezesseis números foram publicados (em São Petersburgo, Berlim, Varsóvia e Genebra). Editado por K.M. Takhtarev e outros. Uma crítica das posições do Rabótchaia Misl, descrita como a variedade russa do oportunismo internacional, foi feita por Lênin em seu artigo “Uma Tendência Retrógrada na Social-Democracia Russa” (ed. br.: ULIÁNOV, V.I. Escritos de juventude : vol. 2. São Paulo: Lavrapalavra, 2020, p. 219-245) e nos artigos publicados no Iskra e em seu livro “Que Fazer?” (ed. br.: LENIN, V.I. Que fazer?. São Paulo: Martins, 2006). [5] N.E. Isso aparentemente é uma referência a I.O. Mártov. [6] N.A. Note. Em sua carta ao meu amigo, por exemplo, há tanto mal-entendidos quanto a tendência economista. Você está certa em enfatizar que uma luta econômica é necessária, que precisamos saber como usar as sociedades legais, que todos os tipos de respostas são necessárias, que não devemos dar as costas à sociedade. Tudo isso é legítimo e verdadeiro. Se você pensa que os revolucionários têm uma visão diferente, isso é um mal-entendido. Os revolucionários dizem simplesmente que todo esforço deve ser feito para garantir que as associações legais não se separem do movimento da social-democracia e da luta política revolucionário, mas, ao contrário, os una mais estreita e indissoluvelmente possível. Em sua carta, contudo, não há esforço para unificar, mas há um esforço para separar, ou seja, há economismo ou “bernsteinianismo”*, por exemplo, na declaração: “A questão trabalhista na Rússia, como ela existe na realidade, foi primeiramente colocada pelo Rabótchaia Misl” em seus argumentos sobre a luta judicial e assim por diante. Eu peço desculpas se minha referência a sua carta ao meu amigo a ofende; eu apenas queria ilustrar meu pensamento. [*N.E. Bernsteinianismo foi uma tendência oportunista antimarxista no movimento social-democrata internacional, que se originou na Alemanha no final do século XIX e foi nomeada a partir de Eduard Bernstein, o social-democrata alemão. Bernstein tentou revisar a doutrina revolucionária de Marx no espírito do liberalismo burguês e transformar o Partido Social-Democrata em um partido pequeno-burguês pela reforma social. Na Rússia, essa tendência encontrou apoiadores entre os “marxistas legais” e os economistas.] [7] N.E. “O economicismo” foi uma tendência oportunista na social-democracia russa no final do século XIX e começo do XX, uma versão russa do oportunismo internacional. O jornal Rabótchaia Misl (“O pensamento do operário”) (1897-1902) e a revista Rabótcheie Diélo (“Causa Operária”) (1899-1902) eram órgãos dos “economicistas”, criticados detalhadamente por Lênin em Que fazer?
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