V. I. Lénine
17 de Julho de 1917
Congresso dos Sovietes do Smólni, Dmítri Kardovski.
Aconteceu com demasiada frequência que, quando a história faz uma viragem brusca, até os partidos avançados não podem durante um tempo mais ou menos longo habituar-se à nova situação, repetem palavras de ordem que ontem eram correctas mas hoje perderam todo o sentido, perderam o sentido tão «subitamente» como «súbita» foi a brusca viragem da história.
Algo semelhante pode repetir-se, ao que parece, com a palavra de ordem da passagem de todo o poder de Estado para os Sovietes. Esta palavra de ordem foi justa durante o período irrevogavelmente passado da nossa revolução, digamos, de 27 de Fevereiro a 4 de Julho. Esta palavra de ordem deixou agora visivelmente de ser justa. Sem compreender isto, não se pode compreender nada das questões essenciais da actualidade. Cada palavra de ordem particular deve derivar do conjunto de peculiaridades de uma determinada situação política. E hoje, depois de 4 de Julho, a situação política na Rússia distingue-se radicalmente da situação de 27 de Fevereiro a 4 de Julho.
Então, neste período passado da revolução, reinava no Estado a chamada «dualidade de poderes», que exprimia tanto material como formalmente a situação indefinida e de transição do poder de Estado. Não esqueçamos que a questão do poder é a questão fundamental de qualquer revolução.
Então o poder mantinha-se numa situação de instabilidade. Era compartilhado, por um acordo voluntário entre si, pelo Governo Provisório e pelos Sovietes. Os Sovietes representavam delegações das massas tanto de operários armados como de soldados livres, isto é, não submetidos a nenhuma coacção exterior. As armas nas mãos do povo, a ausência de coacção exterior sobre o povo — eis em que consistia a essência da questão. Eis o que abria e garantia a via pacífica de desenvolvimento de toda a revolução. A palavra de ordem: «passagem de todo o poder para os Sovietes» era a palavra de ordem do passo imediato, o passo de realização directa nesta via pacífica de desenvolvimento. Era a palavra de ordem do desenvolvimento pacífico da revolução, que de 27 de Fevereiro até 4 de Julho era possível e, naturalmente, o mais desejável, e que hoje já é absolutamente impossível.
Segundo todas as aparências, nem todos os partidários da palavra de ordem: «passagem de todo o poder para os Sovietes» reflectiram suficientemente em que esta era a palavra de ordem do desenvolvimento pacífico da revolução. Pacífico não apenas no sentido de que ninguém, nenhuma classe, nenhuma força séria, podia então (de 27 de Fevereiro até 4 de Julho) opor-se e impedir a passagem do poder para os Sovietes. Isso não é tudo. O desenvolvimento pacífico teria sido então possível também no sentido de que a luta de classes e dos partidos dentro dos Sovietes teria podido então, com a passagem oportuna para eles da plenitude do poder de Estado, revestir-se das formas mais pacíficas e mais indolores.
Também a este último aspecto do problema não se presta a atenção devida. Os Sovietes, pela sua composição de classe, eram os órgãos do movimento dos operários e dos camponeses, a forma já pronta da sua ditadura. Se tivessem tido a plenitude do poder, ter-se-ia acabado na prática com o principal defeito das camadas pequeno-burguesas, com o seu pecado capital, a confiança nos capitalistas, ele teria sido criticado mediante a experiência das suas próprias medidas. A substituição das classes e partidos que ocupam o poder teria podido realizar-se pacificamente, dentro dos Sovietes, na base do seu poder único e pleno; a união de todos os partidos soviéticos com as massas teria permanecido sólida e sem falhas. Não se pode perder de vista nem por um instante sequer que só esta ligação estreitíssima e crescendo livremente em extensão e em profundidade dos partidos soviéticos com as massas podia ajudar a acabar pacificamente com as ilusões do espírito de conciliação pequeno-burguês com a burguesia. A passagem do poder para os Sovietes não mudaria nem poderia mudar a correlação das classes; não mudaria em nada o carácter pequeno-burguês do campesinato. Mas teria dado oportunamente um grande passo para separar os camponeses da burguesia, para os aproximar e depois para os unir aos operários.
Assim poderia ter acontecido se o poder tivesse passado oportunamente para os Sovietes. E isto teria sido o mais fácil, o mais vantajoso para o povo. Tal caminho seria o mais indolor e por isso era preciso lutar por ele com toda a energia. Mas agora esta luta, a luta pela passagem oportuna do poder para os Sovietes, terminou. A via pacífica do desenvolvimento da revolução foi tornada impossível. Começou a via não pacífica, a mais dolorosa.
A viragem de 4 de Julho consiste precisamente em que, depois dessa data, mudou bruscamente a situação objectiva. A situação instável do poder cessou, o poder passou, no ponto decisivo, para as mãos da contra-revolução. O desenvolvimento dos partidos no terreno do espírito de conciliação dos partidos pequeno-burgueses dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques com os democratas-constitucionalistas contra-revolucionários conduziu a que ambos estes partidos pequeno-burgueses se tornassem de facto participantes e cúmplices dos actos sangrentos da contra-revolução. A confiança inconsciente dos pequenos burgueses nos capitalistas conduziu os primeiros, impulsionados pelo curso do desenvolvimento da luta dos partidos, a apoiarem conscientemente os contra-revolucionários. O ciclo de desenvolvimento das relações entre os partidos terminou. A 27 de Fevereiro todas as classses se encontraram juntas contra a monarquia. Depois de 4 de Julho, a burguesia contra-revolucionária, de braço dado com os monárquicos e os cem-negros, ligou a si os socialistas-revolucionários e mencheviques pequeno-burgueses, intimidando-os em parte, e entregou de facto o poder de Estado real nas mãos dos Cavaignac, nas mãos da camarilha militar que fuzila os insubordinados na frente, que esmaga os bolcheviques em Petrogrado.
A palavra de ordem da passagem do poder para os Sovietes soaria agora como quixotismo ou como uma troça. Esta palavra de ordem, objectivamente, seria enganar o povo, infundir-lhe a ilusão de que, mesmo agora, bastaria aos Sovietes quererem tomar o poder ou deliberar isto para obter o poder, de que no Soviete ainda se encontram partidos não manchados pela cumplicidade com os verdugos, de que é possível fazer com que aquilo que aconteceu não tenha acontecido.
Seria o mais profundo dos erros pensar que o proletariado revolucionário é capaz, para «se vingar», digamos assim, dos socialistas-revolucionários e mencheviques pelo seu apoio à repressão contra os bolcheviques, aos fuzilamentos na frente e ao desarmamento dos operários, de «se negar» a apoiá-los contra a contra-revolução. Tal colocação da questão seria, em primeiro lugar, atribuir concepções pequeno-burguesas de moral ao proletariado (pois, pelo bem da causa, o proletariado apoiará sempre não só a pequena burguesia vacilante, mas mesmo a grande burguesia); seria, em segundo lugar — e isto é o principal — uma tentativa pequeno-burguesa de ocultar por meio da «moralização» a essência política do problema.
Esta essência do problema consiste em que hoje já é impossível tomar o poder pacificamente. Só é possível obtê-lo vencendo, numa luta decidida, os verdadeiros detentores do poder no momento actual, isto é, a camarilha militar, os Cavaignac, que se apoiam nas tropas reaccionárias trazidas para Petrogrado, nos democratas-constitucionalistas e nos monárquicos.
A essência do problema está em que estes novos detentores do poder só podem ser vencidos pelas massas revolucionárias do povo, para cujo movimento é condição não apenas que sejam dirigidas pelo proletariado, mas também que se afastem dos partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, que traíram a causa da revolução.
Quem introduz na política a moral pequeno-burguesa raciocina assim: admitamos que os socialistas-revolucionários e os mencheviques cometeram um erro ao apoiar os Cavaignac, que desarmam o proletariado e os regimentos revolucionários; mas é preciso dar-lhes a possibilidade de «corrigir» o erro, «não lhes dificultar» a correcção do «erro»; facilitar a vacilação da pequena-burguesia para o lado dos operários. Semelhante raciocínio seria uma ingenuidade pueril ou simplesmente uma tolice, se não um novo engano dos operários. Pois a vacilação das massas pequeno-burguesas para o lado dos operários consistiria apenas e precisamente apenas no afastamento destas massas dos socialistas-revolucionários e mencheviques. A correcção do erro dos partidos dos socialistas-revolucionários e mencheviques só poderia agora consistir em que estes partidos declarassem Tseretéli e Tchernov, Dan e Rakítnikov cúmplices dos verdugos. Somos plena e incondicionalmente partidários de tal «correcção do erro» ...
A questão fundamental da revolução é a questão do poder, dissemos nós. É preciso acrescentar: precisamente as revoluções mostram a cada passo como se encobre a questão de onde está o verdadeiro poder, mostram-nos a divergência entre o poder formal e o poder real. Nisso precisamente consiste uma das particularidades principais de qualquer período revolucionário. Em Março e Abril de 1917 não se sabia se o poder real estava nas mãos do governo ou nas mãos dos Sovietes.
Porém hoje é especialmente importante que os operários conscientes encarem judiciosamente a questão central da revolução: nas mãos de quem está no momento actual o poder de Estado. Reflecti em quais são as suas manifestações materiais, não tomeis as frases por factos, e a resposta não vos será difícil.
O Estado — escreveu Friedrich Engels — é constituído, antes de mais, por destacamentos de homens armados providos de certos meios materiais tais como as prisões[N111]. Hoje, são os cadetes, os cossacos reaccionários, especialmente trazidos para Petrogrado; os que mantêm na prisão Kámenev e outros; os que encerraram o jornal Pravda; os que desarmaram os operários e uma determinada parte dos soldados; os que fuzilam uma parte não menos determinada das tropas do exército. Estes verdugos são o poder real. Os Tseretéli e Tchernov são ministros sem poder, ministros fantoches, chefes de partidos que apoiam a política dos verdugos. Isto é um facto. E este facto não se modifica pelo facto de Tseretéli e Tchernov, pessoalmente, seguramente «não aprovarem» os actos dos verdugos, pelo facto de os seus jornais negarem timidamente toda a relação com estes: esta mudança de roupagem política não modifica o fundo do problema.
O encerramento do órgão de 150 000 eleitores de Petrogrado, o assassínio pelos cadetes do operário Vóinov (6 de Julho) por levar o Listok Právdi da tipografia — não serão actos de verdugos? não será obra dos Cavaignac? Dizem-nos que disso «não são culpados» nem o governo nem os Sovietes.
Tanto pior para o governo e para os Sovietes — respondemos nós — porque então isso significa que eles são uns zeros; são fantoches, não têm o poder real.
O povo deve, antes de tudo e mais que tudo, saber a verdade — saber nas mãos de quem se encontra, de facto, o poder de Estado. É preciso dizer ao povo toda a verdade: o poder está nas mãos da clique militar dos Cavaignac (de Kérenski, de certos generais, oficiais, etc), apoiados pela burguesia como classe, com o partido dos democratas-constitucionalistas à frente e com todos os monárquicos, actuando por meio de todos os jornais cem-negristas, por meio do Nóvoe Vrémia, do Jivóe Slovo, etc, etc.
É preciso derrubar este poder. Sem isso, todas as frases sobre a luta contra a contra-revolução são frases ocas, são «enganar-nos a nós mesmos e enganar o povo».
Este poder é apoiado hoje tanto pelos ministros Tseretéli e Tchernov como pelos seus partidos: é preciso esclarecer o povo sobre o seu papel de verdugos e a inevitabilidade de tal «finale» destes partidos depois dos seus «erros» de 21 de Abril, de 5 de Maio[N112], de 9 de Junho113, de 4 de Julho, depois de aprovarem a política da ofensiva, uma política que em nove décimos determinou a vitória dos Cavaignac em Julho.
É preciso reorganizar toda a agitação entre o povo de modo que ela tenha em conta, precisamente, a experiência concreta da actual revolução e principalmente das jornadas de Julho, isto é, que mostre claramente os verdadeiros inimigos do povo, a clique militar, os democratas-constitucionalistas e os cem-negros e desmascare irrefutavelmente os partidos pequeno-burgueses, os partidos dos socialistas-revolucionários e mencheviques, que desempenharam e desempenham o papel de auxiliares dos verdugos.
É preciso reorganizar toda a agitação entre o povo, de modo a esclarecer a completa impossibilidade da obtenção da terra pelos camponeses enquanto não for derrubado o poder da clique militar, enquanto não forem desmascarados e privados da confiança popular os partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques. Em condições «normais» do desenvolvimento capitalista, isto seria um processo muito longo e muito difícil, mas a guerra e o descalabro económico acelerá-lo-ão enormemente. Estes são «aceleradores» que podem equiparar um mês e até uma semana a um ano.
Duas objecções se formularão, provavelmente, contra o que ficou dito atrás: primeiro, que falar hoje de luta decisiva significa estimular as acções isoladas, que favoreceriam precisamente a contra-revolução; segundo, que o derrubamento desta significa a passagem do poder, de qualquer forma, para as mãos dos Sovietes.
Em resposta à primeira objecção dizemos: os operários na Rússia são já suficientemente conscientes para não se deixarem levar por provocações num momento que é notoriamente desfavorável para eles. Que agora avançar e resistir significaria ajudar a contra-revolução, isso é indubitável. Que a luta decisiva só é possível com um novo ascenso da revolução nas massas mais profundas, isso também é indubitável. Mas não basta falar em geral do ascenso da revolução, do seu impulso, da ajuda dos operários ocidentais, etc, é preciso tirar uma conclusão determinada do nosso passado, é preciso tomar em consideração precisamente as nossas lições. E esta consideração dá precisamente a palavra de ordem da luta decidida contra a contra-revolução que se apoderou do poder.
A segunda objecção reduz-se também à substituição de verdades concretas por raciocínios demasiadamente gerais. Excepto o proletariado revolucionário, não há nada, nenhuma força, capaz de derrubar a contra-revolução burguesa. É precisamente o proletariado revolucionário que, depois da experiência de Julho de 1917, tem de tomar ele próprio nas suas mãos o poder de Estado — sem isso é impossível a vitória da revolução. O poder nas mãos do proletariado, apoiado pelo campesinato pobre ou os semiproletários — eis a única saída, e já respondemos quais são precisamente as circunstâncias que podem acelerá-la extraordinariamente.
Nesta nova revolução poderão e deverão surgir os Sovietes, mas não os Sovietes actuais, não os órgãos de um espírito de conciliação com a burguesia, mas os órgãos de uma luta revolucionária contra ela. É certo que também então seremos pela construção de todo o Estado segundo o tipo dos Sovietes. Não se trata da questão dos Sovietes em geral, mas da questão da luta contra a contra-revolução actual e contra a traição dos Sovietes actuais.
Substituir o concreto pelo abstracto é um dos pecados capitais, um dos pecados mais perigosos numa revolução. Os actuais Sovietes fracassaram, sofreram uma bancarrota completa devido ao domínio sobre eles dos partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques. No momento actual esses Sovietes parecem-se com carneiros que são conduzidos ao matadouro, colocados sob o cutelo e balem lastimosamente. Hoje os Sovietes são impotentes e estão desamparados perante a contra-revolução, que triunfou e triunfa. A palavra de ordem da entrega do poder aos Sovietes pode ser compreendida como um «simples» apelo à passagem do poder precisamente para os Sovietes actuais, mas dizer isso, apelar para isso, significaria agora enganar o povo. Não há nada mais perigoso que o engano.
O ciclo de desenvolvimento da luta de classes e dos partidos na Rússia de 27 de Fevereiro a 4 de Julho terminou. Começa um novo ciclo, no qual entram não as velhas classes, não os velhos partidos, não os velhos Sovietes, mas renovados pelo fogo da luta, temperados, instruídos, reconstituídos pelo curso da luta. É preciso olhar não para trás, mas para a frente. É preciso operar não com as velhas, mas com as novas categorias de classes e de partidos posteriores a Julho. É preciso partir, no começo deste novo ciclo, da contra-revolução burguesa triunfante, triunfante devido ao espírito de conciliação com ela dos socialistas-revolucionários e mencheviques, e que só pode ser vencida pelo proletariado revolucionário. Neste novo ciclo haverá ainda, naturalmente, etapas muito diversas até à vitória definitiva da contra-revolução e até à derrota definitiva (sem luta) dos socialistas-revolucionários e mencheviques e ao novo ascenso da nossa revolução. No entanto, disto só se poderá falar mais tarde, quando se delinearem estas etapas com precisão ...
Fonte: marxists.org
Notas de fim de tomo:
[N111] Ver F. Fngels, A Origem da família, da Propriedade Privada e do Estado. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 21, S. 166.
[N112] A constituição do primeiro Governo Provisório de coligação foi consequência da crise provocada pela nota que o ministro dos Negócios Estrangeiros, P. N. Miliukov, tinha enviado às potências aliadas no dia 18 de Abril (1 de Maio) de 1917, confirmando a observância pelo Governo Provisório de todos os tratados concluídos pelo governo tsarista, e prometendo continuar a guerra até à vitória definitiva. Devido às manifestações espontâneas de protesto que se transformarem, nos dias 20 e 21 de Abril (3 e 4 de Maio), num poderoso movimento dos operários e soldados, o Governo Provisório, para criar a impressão de uma viragem de política resolveu demitir P. N. Miliukov e A. I. Gutchkov dos seus cargos de ministro dos Negócios Estrangeiros e de ministro da Guerra respectivamente, e apresentou ao Soviete de Petrogrado uma proposta solicitando o seu consentimento para a formação do governo de coligação. O Comité Executivo, apesar da sua decisão de 1 (14) de Março sobre a não participação de representantes do Soviete no Governo Provisório, resolveu, na reunião extraordinária da noite do dia 1(14) de Maio, aceitar a proposta do Governo Provisório. Depois das negociações chegou-se, no dia 5 (18) de Maio, a um acordo sobre a partilha das pastas ministeriais no novo governo, em que, além dos 10 ministros capitalistas, entraram também dirigentes dos partidos conciliadores: A. F. Kérenski, ministro da Guerra e da Marinha, M. I. Skóbelev, ministro do Trabalho, V. M. Tchernov, ministro da Agricultura, A. V. Pechekhónov, ministro dos Abastecimentos, I. G. Tseretéli, ministro dos Correios e Telégrafos.
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