Glauber Ataide
03 de dezembro de 2021
Dizer que o povo é alienado não é exatamente depreciá-lo. A questão depende do que entendemos por “alienação”, e quando estudamos o sentido filosófico do termo na tradição marxista, vemos o problema de outra forma.
Esta afirmação quer dizer, na maioria das vezes, que os mais pobres não têm consciência de sua situação social, ou que pelo menos não se rebelam contra ela, como seria de se esperar. A questão é colocada de tal modo, no entanto, como se a causa da alienação estivesse nas diversões populares. É o que sugere uma frase muito presente na internet e pichada em muros de diversos países: "enquanto te exploram, tu gritas gol". O que isso parece indicar é que, se o povo não tivesse futebol ou novela, por exemplo, aí sim ele teria consciência de sua miséria e exploração.
Alienação não quer dizer, todavia, simplesmente “ignorância”. O povo não é alienado pelo fato de ter diversões ou distrações. Neste texto pretendemos mostrar, brevemente, o desenvolvimento deste conceito na filosofia alemã até Marx e explicar não apenas em que sentido o povo é alienado, mas também o que causa a alienação e como talvez superá-la.
O que é alienação?
A alienação, ou Entfremdung, é um conceito importante no pensamento de três filósofos alemães: Georg W. F. Hegel, Ludwig Feuerbach e Karl Marx. A ideia básica de alienação é a de estar separado de alguma coisa. Na história cultural alemã ele já aparece, por exemplo, na tradução da bíblia realizada por Martinho Lutero no século XVI. O líder da reforma protestante assim traduziu, por exemplo, Efésios 4:18:
"Ihr Verstand ist verfinstert, und sie sind entfremdet dem Leben, das aus Gott ist, durch die Unwissenheit, die in ihnen ist, und durch die Verstockung ihres Herzens." (Grifo nosso) ("Eles estão obscurecidos no entendimento e separados da vida de Deus por causa da ignorância em que estão, devido ao endurecimento dos seus corações." [Grifo nosso])
Neste versículo percebemos uma associação entre alienação e ignorância, ou Unwissenheit. Daí ser muito comum, na linguagem cotidiana, sempre relacionar os dois conceitos, ou até mesmo utilizá-los como sinônimos.
A alienação em Hegel
Na filosofia, contudo, a questão é mais complexa. Hegel formulou o conceito de alienação no período em que realizava pesquisas em economia política, e a descreve como a forma com que uma ideia, uma vez externalizada em um objeto, pode aparecer de maneira estranha ao sujeito que é sua origem. No pensamento hegeliano, o progresso em relação ao absoluto é um processo de "desalienação", quando aquilo que é separado de si mesmo vai, progressivamente, reconquistando sua unidade.
Um conceito relacionado e que nos ajuda a entender a alienação é o de exteriorização, ou Entäußerung. Podemos dizer, de certa maneira, que toda alienação envolve uma exteriorização, mas a diferença é que, na alienação, o indivíduo não se reconhece naquilo no qual colocou o seu ser. Um exemplo de exteriorização é a produção de obras de arte. O artista coloca o seu ser em sua criação e reconhece que aquilo é criação sua, que sua produção contém algo de si. Já na alienação, não ocorre este reconhecimento, como ficará claro nas reflexões de Feuerbach sobre a religião.
A alienação em Feuerbach
Feuerbach utiliza o conceito de alienação em sua crítica à religião. A alienação acontece, por exemplo, quando o homem cria Deus, mas não se reconhece nele. Em sua obra A essência do cristianismo, o filósofo alemão pretende reduzir a teologia à antropologia, mostrando que tudo o que a religião afirma a respeito do sobrenatural diz respeito, na verdade, ao próprio ser humano.
O homem não sabe que o Deus em que acredita, ao qual venera e realiza cultos, é na verdade apenas uma exteriorização de si próprio. Deus é uma projeção dos principais atributos humanos, colocados agora de forma superlativa, em um ser que é criação do próprio homem. Se somos capazes de amar, então Deus é todo amor; se conhecemos algumas coisas, então Deus conhece tudo (onisciente); se temos alguma força, então Deus tem toda a força do universo (onipotente).
Estas reflexões de Feuerbach sobre a religião serão de suma importância para Karl Marx em sua análise sobre a relação do trabalhador com o produto do seu trabalho.
A alienação em Karl Marx
O contexto cultural e intelectual de Marx era dominado pela figura de Hegel. Suas reflexões sobre a alienação se inserem, por isso, na discussão já em curso, levando em conta sobretudo as críticas de Feuerbach. O que é original no filósofo de Trier é sua busca pelas causas da alienação nas condições materiais concretas, e não apenas em conceitos ou ideias históricas.
A alienação na sociedade capitalista, para Marx, se origina da relação entre a divisão social do trabalho e a instituição da propriedade privada. Esta aparece como o "produto, resultado e consequência inevitável do modo alienado de trabalho." Ao analisar o trabalho assalariado, Marx percebe que o trabalhador, no capitalismo, é transformado em uma mercadoria como todas as outras, e que o produto de sua atividade é tornado estranho a ele.
Nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, ele afirma: "quanto mais o homem se desgasta em seu trabalho, mais poderoso se torna o mundo estranho, material que ele cria; mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior; menos ele pertence a si próprio. O mesmo acontece na religião [...]"
Esta reflexão sobre o empobrecimento do homem às custas do empoderamento do mundo estranho criado por ele é claramente influenciada por Feuerbach. Mesmo que o próprio Marx não tivesse escrito que “o mesmo acontece na religião”, ainda assim poderíamos ler traços de sua influência. Apenas três anos antes, o crítico da religião havia publicado as mesmas ideias em A essência do cristianismo, afirmando que quanto mais o homem coloca seu ser em Deus, mais pobre ele se torna.
De maneira geral, Marx considera que a alienação tem quatro aspectos: o homem é alienado 1) do produto do trabalho (que, como riqueza social, contribui apenas para o empobrecimento do trabalhador); 2) do mundo natural (que aparece apenas como matéria prima); 3) das outras pessoas (relações humanas se dão através de relações entre coisas) e 4) de si próprio (as funções animais do trabalhador se tornam o refúgio de sua humanidade, enquanto sua criatividade humana é bestializada no trabalho).
No trabalho alienado, o trabalhador "não afirma, mas apenas contradiz sua essência", e ao invés de desenvolver suas energias física e mental, ele mortifica seu corpo e arruína sua mente. A superação da alienação, para Marx, não acontecerá em uma Aufhebung, ou na suprassunção da objetivação do Espírito na autoconsciência, à maneira hegeliana, mas sim na suprassunção da causa social da alienação, que é o modo de produção capitalista.
Por que mesmo o povo é alienado?
Se o povo é explorado e alienado nestes quatro aspectos descritos por Marx, por que ele não tem consciência disso? A resposta é que não existe conhecimento imediato da realidade social. Quando falamos “imediato” queremos dizer “sem mediações”, no sentido de que não basta viver, estar absorto em determinada realidade social para conhecê-la. A experiência particular não fornece a totalidade, o universal.
Uma lição que extraímos do pensamento dialético é que todo objeto é o resultado de múltiplas determinações. Cada aspecto da realidade é resultado de um processo, assim como cada um de nós, enquanto indivíduos. O que aconteceria, por exemplo, se eu acordasse amanhã e não me lembrasse de minha própria história? Eu perderia minha identidade. É como naqueles diversos livros e filmes que exploram esta temática: o indivíduo acorda, um belo dia, sem se lembrar de nada sobre sua vida passada, e sem conhecer sua história, ele perde então a própria identidade.
A sociedade em que vivemos também é resultado de um processo. Se não conhecemos a história desta sociedade, como ela se formou para ser o que é hoje, também não temos identidade enquanto sociedade. Não conhecer a história de nossa classe social é análogo a perder a memória enquanto indivíduo. Se sou parte da classe trabalhadora, mas não conheço sua história e suas lutas, então não tenho identidade enquanto trabalhador, embora na prática eu continue sendo trabalhador. A relação aqui é entre ser e ter consciência de ser.
Podemos então responder à questão da seguinte maneira: nós, o povo, somos alienados devido ao modo de produção capitalista. Somos alienados do produto do nosso trabalho e sofremos esta alienação na própria atividade laboral. Os carros produzidos em uma montadora de automóveis, por exemplo, não pertencem aos operários que os fabricam, mas aos donos das montadoras. Este é um dos aspectos mais fundamentais em que somos alienados e que se reflete em todos os outros.
Não é o futebol, a novela ou qualquer outra distração o que impede a maioria da classe trabalhadora de perceber esta condição. Nossa verdadeira alienação tem origem no capitalismo, e a ignorância - que não é exatamente alienação, como mostramos - não é causada pelas atividades de tempo livre. Retirar a diversão do povo iria apenas deixa-lo mais triste, mas não exatamente mais consciente.
Fonte: filosofiaepsicanalise.org
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